- Êpa, essa viagem foi muito rápida! - Tô com muito calor! Essa roupa laranja é um inferno. - C viu? Quase morreu. Foi um grande estouro. - Os portões da escolha foi aberto. Saiu um monte de gente de uma vez. Encavalou. - Frita pastel e coxinha Rute. - Vô leva esse pilantra no pau! Zé subiu no andaime. Maria chegou na casa de Andreia para cuidar do Pedrinho. Raimundo acabou desistindo de faltar ao trabalho. Laura faltou e comprou um atestado na praça 7. Ninguém aqui é vítima. Ninguém aqui sou eu.

terça-feira, 1 de julho de 2014

A mão que não pensa


Cláudio H. Pessoa Brandão – claudiohpb@gmail.com

Há 43 anos aconteceu o maior acidente da construção civil brasileira, que ficou conhecido como Tragédia da Gameleira. 69 operários que trabalhavam na construção do parque de exposições de Belo Horizonte, o Expominas, foram soterrados na queda de um dos pavilhões. De acordo com historiadores que se debruçaram sobre o caso, os operários tinham plena consciência da possibilidade de um desabamento, pois tinham notado várias rachaduras pelas paredes e colunas e frequentemente ouviam estalos emitidos pelas estruturas. Os peões tentaram avisar aos engenheiros sobre os perigos, mas quem ousaria criticar o desenho de Oscar Niemeyer ou colocar em dúvida os conhecimentos científicos do engenheiro-chefe? Os trabalhadores que questionavam a obra eram ameaçados de demissão sumária e até prisão; eram os anos de chumbo do regime militar. Os cálculos matemáticos dos engenheiros garantiam a continuidade da obra à revelia da experiência prática dos operários. Os homens de ciência autorizavam o ritmo frenético das obras organizadas pelo autoritarismo hierárquico. Mais um episódio em que o “intelectual” se sobrepõe ao “manual”.

A polarização trabalho intelectual versus trabalho manual é imemorial, mas são conhecidas as interpretações que lançam suas raízes na antiguidade ocidental. O ócio seria o lugar dos filósofos ou daqueles que se dedicavam à política, consideradas “atividades intelectuais”; o negócio (negação do ócio) seria o lugar do trabalhador, do artesão, do escravo, ou seja, o lugar daqueles dedicados às “atividades manuais”. A Igreja Católica, salvo as exceções de algumas correntes teológicas no interior da instituição, comumente via o trabalho manual como condição de penitência, de castigo. A dimensão material, o mundano ou profano, se contrapõe ao sagrado, alcançável por meio do esforço espiritual. A revelação divina se daria no interior do ser, que deveria resistir às tentações do corpo. O corporal e, por consequência, a atividade manual ficam em segundo plano nos termos da espiritualidade. A cultura que se convencionou chamar de modernidade passa a difundir o ideal do domínio do ser humano sobre o meio material não somente por meio da fé, mas também por meio da razão. A natureza vista como templo passa a ser também laboratório. As atividades mais voltadas para o especulativo, tal como a filosofia e o direito, passam a competir com as escolas de engenharia. Os engenheiros passam a ser formados em um sistema de ensino laico com vistas a desenvolver meios garantidores da ordem moral e do progresso material da sociedade. A medicina se torna mais prática nesse mesmo movimento, o médico passa também a ser cirurgião, atividade antes considerada como degradante por causa do contato direto com as secreções corporais e com as vísceras. Aos poucos a atividade intelectual desinteressada, considerada “filosófica demais”, vai perdendo espaço para uma atividade intelectual cada vez mais pragmática, que responderia com mais eficiência para a modernização e desenvolvimento econômico das sociedades.

Vários cientistas sociais sustentam a ideia de que a desvalorização dos trabalhos manuais no Brasil, tal como pode ter ocorrido na Tragédia da Gameleira, é atenuada pela herança dos quase 400 anos de escravidão. De fato, o país se organizou como uma sociedade de corte e o status era fator de diferenciação social. Como as atividades manuais traziam o estigma de coisa de escravo, dedicar-se as ditas atividades intelectuais seria fator de enobrecimento. Os artesãos que se organizavam em corporações até poderiam galgar cargos de relevância para a comunidade, mas sempre ocupariam lugares menores em relação aos bacharéis. A sua origem social, a sua educação e a cor da sua pele eram fatores dificultadores da expressão de suas opiniões em uma sociedade de doutores brancos.

Quero com o dito até aqui encaminhar minhas reflexões para dois aspectos: (1) o desvalor para com a atividade tida como meramente intelectual, por não dedicar-se a resolução de situações práticas voltadas para o mundo da produção mercadológica; (2) a falsa dicotomia trabalho intelectual-manual que deslegitima o trabalhador não escolarizado ou não acadêmico. Para isso, refletirei a partir um episódio ocorrido comigo recentemente.

O programa de mestrado ao qual faço parte como estudante esteve pleiteando a abertura do curso de doutorado, para isso uma comissão nomeada pelo Conselho de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES) fez uma avaliação presencial da instituição, o que incluía um bate-papo com os mestrandos. As professoras avaliadoras nos deixaram muito à vontade para fazer quaisquer tipos de perguntas sobre a pós-graduação no Brasil. Tão logo tive chance perguntei para as mesmas o motivo pelo qual bolsistas de iniciação científica, de mestrado e doutorado não tem direitos trabalhistas, tal como licença maternidade e os demais benefícios do INSS; a resposta: “Por que vocês são estudantes”. Ora, ser estudante é entendido como uma atividade intelectual desinteressada, não voltada para o mundo da produção de bens consumíveis; ser estudante não gera riqueza. Por isso, não são enquadrados como categoria profissional, não são trabalhadores. Basta receber uma bolsa-auxílio para sobreviver, e aqui está subjacente o entendimento de que é necessário somente um “auxílio financeiro”, como se todos aqueles que se dedicam às pesquisas científicas fosse oriundos de famílias ricas que tivessem condições de bancar as suas elucubrações. Ademais, o que acontece em um grande número de instituições de ensino é que esse auxílio, uma vez que você é selecionado para recebê-lo, impede que você tenha qualquer vínculo empregatício com carteira assinada. Você recebe um auxílio para dedicar-se exclusivamente à pesquisa. Me parece uma permanência da cultura bacharelesca da sociedade de corte, cujas instituições de ensino eram voltadas tão somente para os mais abastados, e aqueles "sem meios" recebiam somente um filantrópico auxílio financeiro. Parece que se formar cientista no Brasil ainda não é coisa para o pobre.

O estudante de mestrado ou doutorado não é regulado necessariamente pelo tempo do trabalho da indústria. Não são poucas as dificuldades para explicar para as pessoas o que “eu faço da vida”. Ciência é uma atividade morosa, difícil e extremamente cansativa. Raramente encontramos estudantes que conseguem ter disciplina para não passar fins de semanas inteiros na frente do computador num verdadeiro "artesanato intelectual", sem falar das prospecções para coletas de dados que se dão nos lugares mais diversos e adversos. Parece que também por não se guiar pela racionalização temporal do mundo do trabalho, por não necessariamente bater ponto, o estudante não é considerado trabalhador. Não estou aqui defendendo que o pesquisador deverá ser enquadrado nos indicadores de produção tal como ocorrem nas indústrias aos moldes da gestão da qualidade; é perigoso cair no erro de querer a ciência regulada por valores análogos aos do mercado. Da mesma forma, um pedreiro que não necessariamente se enquadra no tempo do relógio de ponto comumente é tachado de preguiçoso. Também não estou aqui defendendo aqueles que por ventura não arquem com os prazos combinados, mas quero chamar atenção para a naturalização de um certo tempo do trabalho. É como se as 8 horas (no mínimo) de trabalho fossem tão naturais quanto o nascer do sol. O cumprimento do tempo artificial da indústria hoje parece ser a condição básica para considerar os sujeitos como trabalhadores. Seriam trabalhadores somente aqueles que se submetem as insalubres, longas e pesadas jornadas de trabalho? É uma irracionalidade querer um tempo de trabalho que me permita viver com saúde e com tempo pra me dedicar a outras atividades que não somente aquelas que visam produções voltadas para o lucro? Por não objetivar a produção imediata de bens consumíveis o estudante-cientista vinculado formalmente às instituições de produção de conhecimento não é visto como trabalhador, a ponto de não ter qualquer tipo de seguridade social.

O fato da atividade estudantil ser chamada de intelectual polariza essa com as ditas atividades manuais, como se um marceneiro, uma costureira ou um pedreiro não utilizassem do intelecto para trabalhar. E aqui há o enaltecimento do conhecimento escolar, como se ele fosse o único legítimo. O estatuto das ciências se sobrepõe aos saberes das experiências daqueles que raciocinam por meio de parâmetros não escolares, muitas vezes elaborados de forma autodidata ou transmitidos via oralidade e demonstrações práticas. Cotidianamente os doutores utilizam do status dos seus diplomas para se sobreporem aos trabalhadores não escolarizados ou não acadêmicos. Ao mesmo tempo em que ainda parece existir essa hierarquia entre “intelectuais” e “trabalhadores”, sempre em desfavor do segundo, há o reconhecimento de sua importância. Todos precisam de pedreiros, isso é um fato cabal, mas é comum a seguinte comparação: “É um absurdo um pedreiro ganhar o dobro que um professor...” É claro que os professores brasileiros merecem um salário com um mínimo de dignidade, mas isso não permite desqualificar um saber-fazer que não é diplomado academicamente. Os pedreiros são essenciais para a sociedade e devem ser tratados tal e qual. Mas somente os pedreiros deveriam falar por eles mesmos, há aqui o risco dos "intelectuais" se sentirem no direito de falar pelos "trabalhadores", em um claro vanguardismo. É preciso que todos reconheçam os seus lugares singulares de trabalhadores, todas as categorias, ombro a ombro.

Enquanto isso, vários operários se acidentaram, foram mutilados e morreram durante as construções dos estádios brasileiros que estão servindo à FIFA, mas sem problemas, os engenheiros deram todas as desculpas argumentadas por meio da sua matemática. Enquanto isso, milhares de pessoas ultimamente  se dirigem para a Funfest, a festa da Copa do Mundo, realizada no Expominas em Belo Horizonte, o mesmo da Tragédia da Gameleira. Não há ali um memorial dedicado a lembrança daqueles 69 operários mutilados e mortos. Enquanto isso, eu, um intelectualzinho romântico e idealista, me dirijo para as manifestações Anti-Copa, tendo o trabalho de sonhar. E todos aqueles estudantes que se dão ao trabalho de protestar, de se envolverem em movimentos políticos ao lado de trabalhadores e de fazer de suas atividades intelectuais meios para repensar a sociedade, comumente são tachados de vagabundos por não estarem trabalhando

2 comentários:

  1. Ótimo texto Claudio… Não sabia desse acontecimento no expominas, aliás esse tipo de informação não é veiculada, pois não foram engenheiros que morreram. No entanto, queria fazer um comentário, já que vc mencionou que não seria necessário colocar a ciência dentro dos valores do mercado ao querer enquadra-la por indicadores de produção. Só acho que isso já existe, a ciência é a base do mercado e é a ele que ela serve, não é a toa que existe um laboratório da google na faculdade de engenharia e um da natura na faculdade de farmácia na UFMG… A diferença é que a ciência tem a prerrogativa da imparcialidade, ela vem sempre mascarada de boas intenções, ela está sempre servindo ao povo, assim como nossos governantes tb estão. Entendo sua crítica relacionada às condições de trabalho em que os estagiários e pesquisadores não concursados estão submetidos, mas o que está implícito aí é a hierarquia que estrutura vários campos da nossa vida. Pq uma coisa é um graduando, mestrando ou doutorando, outra coisa é o chefe da pesquisa, já doutor ou pós doutor, que possui não só os benefícios financeiros do seu empreendimento como também o glamour da profissão…. No mais, foi muito bom refletir isso a partir dos seus questionamentos.

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  2. Eu também não sabia da tragédia da gameleira!
    Que absurdo não haver qualquer tipo de homenagem (ao menos) aos trabalhadores. Um monumero, estátuas.
    Absurdo maior esse silenciamente vir apesar de vários governos municipais do tal Partido dos Trabalhadores em Belo Horizonte e ainda mais depois de 12 anos de governo federal do mesmo partido.
    Uma vergonha isso acontecer num país em que a imprensa golpista, a grande mídia, homenageia Pelé e Neymar como suportes de construção de unidade nacional (mas desigualdade social indiscutivelmente absurda) como hitlers tupiniquins.

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