- Êpa, essa viagem foi muito rápida! - Tô com muito calor! Essa roupa laranja é um inferno. - C viu? Quase morreu. Foi um grande estouro. - Os portões da escolha foi aberto. Saiu um monte de gente de uma vez. Encavalou. - Frita pastel e coxinha Rute. - Vô leva esse pilantra no pau! Zé subiu no andaime. Maria chegou na casa de Andreia para cuidar do Pedrinho. Raimundo acabou desistindo de faltar ao trabalho. Laura faltou e comprou um atestado na praça 7. Ninguém aqui é vítima. Ninguém aqui sou eu.

terça-feira, 29 de julho de 2014

GAZA




O mundo em que vivemos hoje é o mundo da velocidade. Boa parcela desta velocidade é fruto do desenvolvimento tecnológico conquistado pela humanidade, fundamentalmente nos últimos dois séculos. Pessoas, mercadorias e informações circulam numa velocidade tão grande que compreender o que ocorre no mundo se torna uma tarefa cada dia mais árdua.

Sabemos, por graça dos milhares de satélites que orbitam sobre nossas cabeças, quase em tempo real, sobre o tufão que arrasa alguma ilha do caribe, sobre o tsunami que varre a Indonésia, sobre a bomba que explode no metrô de Londres, sobre as torres nova-iorquinas que desabam e matam milhares de pessoas, ou ainda sobre o filho do príncipe que acaba de soltar seu primeiro peido real. 

Tudo se tornou muito pior, certamente. Aumentar tanto assim a velocidade da vida traz benefícios para muito poucos. Talvez para uma lógica empresarial, numa época em que somos compelidos a consumir cada vez mais, aumentar a velocidade da linha de produção seja algo bastante vantajoso. 

Para nós, toda essa velocidade e esse desarranjo em relação ao tempo das coisas certamente provoca graves prejuízos. A filósofa Olgária Mattos deu entrevista a alguns anos em que refletiu sobre o tempo em nossa sociedade, e em certa altura da entrevista ela diz o seguinte: “Essa idéia de que você não tem tempo é a forma mais perversa da alienação. Marx já dizia isso, a forma mais perversa não é a alienação do trabalhador com relação ao produto do seu trabalho e ao sentido do trabalho, é a alienação do tempo, você não ser senhor do seu tempo, você é determinado pelo tempo das coisas e não escolhe mais a sua vida. É o que está acontecendo hoje”. (disponível em http://www.notaderodape.com.br/2009/05/entrevista-epreciso-reconquistar-o.html acessado em 28/07/2014).  
 
Dito isso, gostaria de refletir sobre o impacto deste ritmo atroz na nossa capacidade de compreender certos acontecimentos que nos rondam. Na mesma velocidade que uma notícia é veiculada na mídia, ela simplesmente desaparece de nossas vistas para dar lugar a outra tragédia ou catástrofe ao redor do mundo.

Se ontem os meios de comunicação só tinham espaço para informações sobre a Copa da Fifa, hoje só se fala da crise na Ucrânia e do Massacre promovido por Israel na Faixa de Gaza. Ontem no Fantástico (domingo, 24/07/2014) foram exibidas imagens exclusivas (odeio essa expressão, principalmente quando se trata de uma questão tão séria como este conflito) dos mísseis israelenses destruindo alvos civis na Faixa de Gaza. O contrário não foi exibido, porque quase todos sabemos da desproporcionalidade das forças envolvidas neste conflito. 

O problema que precisa ser discutido passa pela velocidade como o assunto é tratado. A superficialidade da cobertura midiática encontra seu ponto de apoio no ritmo alucinante dos fluxos de notícias. Quando paramos para tomar fôlego e refletimos um pouco, temos a oportunidade de ver o quanto esta superficialidade se encontra atrelada à parcialidade das coberturas dos grandes meios de comunicação.

É o tripé do sucesso. Superficialidade – Velocidade – Parcialidade, não necessariamente nesta mesma ordem. Quem puxar um pouquinho na memória (se a memória estiver ruim pode puxar na internet, que pra isso funciona muito bem) vai se lembrar da ofensiva israelense contra a Faixa de Gaza em 2009. E irá se lembrar que este mesmo exército que hoje massacra escolas e abrigos de refugiados, utilizou bombas incendiárias contra uma população completamente desamparada pelos organismos internacionais e pelos países que mais se dizem os defensores da democracia e da paz. (Aliás, os mesmos que se omitem agora). 

Não sou nenhum cientista política, analista de conjuntura internacional, diplomata ou coisa que o valha. Sou somente um cara, que vê de forma cíclica o Estado de Israel massacrar os Palestinos através de um exército ultra potente que é abastecido principalmente com armas alemãs. (quem diria hein!!!). 

Alguém poderia me dizer a causa de ataques tão violentos? Será mesmo que alguém se esquece de que soldados israelenses são flagrados quase que rotineiramente espancando brutalmente jovens e crianças palestinas? E quem nunca ouviu que estas ofensivas cíclicas ocorrem única e exclusivamente com a finalidade de ocupar a Faixa de Gaza para instalação de colônias de israelenses? 

O problema é que não há debate por causa da velocidade. Amanhã começa um novo conflito e a TV e os jornais passam a transmiti-lo ao vivo para todo o mundo, e aí o conflito entre israelenses e palestinos volta a ser notícia somente daqui a alguns meses, quando se deflagra nova onda de horror. 

Este tempo fugaz, em que a reflexão séria e minimamente imparcial vira piada na boca de babacas estúpidos de shows de stand up´s, reduz tudo a um espetáculo de horror que não permite nem mesmo que as pessoas sintam culpa pelas besteiras que falam, ou pelos partidos que tomam. E tomam muitas vezes de forma irrefletida, já que não há mais tempo pra nada, porque acabou o Jornal Nacional e vai começar a nova novela das nove, que no meu tempo, era a novela das oito.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

outsiders

Mayra

Desvio de luta,
quanta conduta,
a regra se fez,
por quem se desfez,
a sarjeta chegou,
a polícia parou,
a mulher não viu,
o negro se despiu,
a luz se foi embora,
e em uma outra aurora
se desenvolveu.
O limite acordado
por patrões com carro importado,
veio o juiz,
a ponte está por um triz,
e a porta abriu
para quem contraiu
à regra, puta que pariu!
Foi feita por quem?
Foi escrita pra quem?
Descrita por alguém?
O espaço é sem margem
pra quem é feito de imagem,
e o estuprador tem sua lei,
o homossexual não quer ser rei,
o negro é igual ao branco, eu sei,
a mulher que eu beijei.
E a norma que tem forma
de carrasco embriagado,
deixa-me tonta, obrigada,
e eu quero despir a farda,
quero saber quem é dono da espada,
quero saber quem é que fala,
o que a gente cala.
O desvio é desviado,
por um pobre coitado
que nem sabe ler.
E aquele que sabe,
faz charme,
suave se resolve a sós,
como quem desfaz os nós
que a sociedade alinhou.
E ainda chamam de louco
todo e qualquer pouco,
estatisticamente rotulado,
por um postulado
de colarinho branco
e alma nada franca.
Se a loucura acaba com a lucidez,
louca quero ser,
para compreender,
que não é justo
seguir conceitos,
pautados em pré-conceitos,
orgulho e falta de fé.
Caminho com um pé
que é pra deixar o outro cru
e nu,
sem sapato,
porque a tão formosa lei,
desvia a si própria,
com um capital que gira
para o pouco
que acha muito
ser normal.

terça-feira, 15 de julho de 2014

Sobre reis e príncipes




Mayara Mattos

         Seguindo a ordem da dinastia Bourbon na Espanha um jovem príncipe assume o trono após a abdicação do rei que já não possuía condições de governar. Em meio aos plebeus, as carruagens reais passavam, rearranjo dos títulos da nobreza e dos gloriosos benefícios eram necessários para se instaurar a nova governança. O futuro rei era aclamado por uma multidão calorosa, festas eram realizadas em homenagem a esse grande evento e todos os holofotes estavam direcionados a família real, que é a expressão de Deus na terra.
            Essa história poderia estar situada num passado longínquo, mas ocorreu em junho de 2014. Felipe VI de Bourbon subiu ao trono espanhol devido a escândalos que envolvia corrupção e tráfico de influência dentro da sua própria família, o que se agravou com a crise econômica que insiste em assolar o país. Porém, esse histórico foi abafado pela imprensa espanhola que veiculava insistentemente os atributos de majestade do novo rei. Esportista, falante fluente de várias línguas, marido fiel e pai de duas lindas garotas, alto, loiro, de olhos azuis e educado nos principais centros de ensino do mundo (como todo bom nobre), Felipe VI era evocado como a salvação de um governo imerso em graves problemas políticos. Até mesmo a copa das tropas que ocorria no Brasil foi esquecida pela imprensa espanhola, a coroação era o foco de toda a imprensa.
            É comum que se pense nos meios de comunicação dos países ditos desenvolvidos, como veículos comprometidos com a informação e circulação livre de ideias que abrange o público como um todo, e em que a liberdade de expressão é plenamente respeitada. Esse é mais um dos mitos que se reproduz, a imagem da Europa e dos EUA como blocos homogêneos de democracia inegável, economia exemplar e onde tudo funciona perfeitamente bem, isso desemboca na falácia de uma plenitude social, política e econômica que seria o padrão a ser seguido pelos subdesenvolvidos da cadeia de dominação.
            Esses países colonizadores (do passado ao presente) comandam as estratégias econômicas e oferecem modelos de prosperidade, tipo o consumo em massa expresso pelo seu melhor cúmplice, o capitalismo. Assim, minha intenção aqui é de desestabilizar representações dadas como absolutas e questionar nossas ações que refletem a possibilidade única de existência oferecida pelo eixo consagrado do mundo.
            O ideal de que esses países seguiram um caminho unilinear do desenvolvimento, o qual desembocou no estado de bem estar social pleno e democracia perfeita, é o que impulsiona os países com o rótulo de emergente a prosseguirem com sua caminhada fatídica. E a imprensa tem um papel fundamental nessa trama, muitas vezes ela nega ou obscurece as formas de imperialismo dos países modelos ou qualquer outro evento que seja contrário a expectativa (ex. espionagem), focando, normalmente, nos indicadores do desenvolvimento, PIB e IDH, para que os legitimem como detentores da ordem e do progresso, os quais corremos cegamente atrás. Nega-se, portanto, a reflexão de quais foram as condições criadas pelos países consagrados pelo desenvolvimento para estarem no ápice da pirâmide criadas por eles mesmos. Parece que se prefere deixar nos livros de história, nem todos muito comprometidos com a boa qualidade na informação, as respostas a esses questionamentos. Pois, deixa-se de conectar o suposto apogeu dos países exploradores com a colonização brutal empreendida pelos mesmos, naturalizando a linha evolutiva do desenvolvimento em que todos os outros países estão passando, ou pelo menos deviam.
            Assim, quando se tenta encontrar uma explicação para os nossos "atrasos" (de novo a ideia da corrida rumo a um ponto de chegada), aciona-se o fato de termos sido colonizados e não de termos colonizado. Desse modo, legitima-se a necessidade de explorar o "outro", seja ele representado por grupos fora do território nacional ou pela grande massa marginalizada, como pobres, pretos, indígenas e imigrantes. O Brasil tomou lições de modo exemplar, a nossa classe dominante, fruto da elite colonial, tende a explorar nossos vizinhos latino americanos que se encontram em situações econômicas menos favoráveis. Além de empreender constantes desrespeitos constitucionais em face dos sujeitos considerados entraves ao desenvolvimento tanto almejado, vide as mazelas das populações ameríndias.

            Esses massacres diários, mascarados e justificados por expressões bem estruturadas no imaginário popular, como bem da nação, progresso e ordem, têm seu impacto diminuído nos olhares daqueles que não conseguem conceber outros modos de existência, a não ser aquele legitimado pelo circuito colonial. O modelo de desenvolvimento, intrínseco na nossa visão de mundo, não nos permite admitir a fuga dos valores impregnados pela lógica da dominação, acabamos por reproduzir o caminho empreendido pelos nobres e racionais conquistadores, custe o que custar.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Somos todos um só: você, a FIFA, a UPP e a miséria


Tiago



No país do futebol, em tempos de Copa no país da Copa, é dolorosamente difícil ser do contra, sobretudo contra a Copa. Não é fácil não querer ir a algum lugar para assistir ao jogo do Brasil, não querer torcer pelo Brasil e, pior ainda, afirmar não torcer pelo Brasil. E aí, onde é que você assistiu ao jogo? E a Savassi, tá um festão lá, né...tem passado por lá? O que, você torceu para o Chile, como assim!?

Sinceramente, nem foi para o Chile que torci, mas contra o Brasil, contra o que significa este Brasil, contra o que significa uma festa na Savassi neste momento, contra o que esta festa celebra, e a favor daquilo que é preciso esquecer para se celebrar por lá neste momento, principalmente por lá. (Na verdade, a Savassi em si, e em qualquer época do ano, é a própria celebração de diversos motivos que me fazem ser contra a Copa – como a desigualdade, a condição necessária de sua existência. A Copa apenas potencializa essa representação nefasta, aliás, a Copa lhe cai muito bem).

Mas o fato é que depois de tudo que li, vi, e assisti nos últimos anos não dá para torcer. Não sei vocês, mas para mim não dá para participar. E olha – e quem me conhece sabe – eu gosto de futebol.

A questão é que isto não é só futebol. Como eu já disse, de futebol eu gosto, e muito. Mas esta Copa é mais que isso, e não é preciso muito esforço para notar. As propagandas e toda a avalanche publicitária mostram claramente o que de fato ela é: um negócio. Aliás, um negócio extremamente lucrativo. Mas qual problema há em lucrar? Afinal, o mundo é assim, você pode pensar. Para mim, há vários, sobretudo se pensarmos na mentalidade que sustenta a ideia do lucro: o pressuposto de que tudo é capital, ou seja, uma riqueza que serve para produzir mais riqueza. Se a coisa não serve a isso ela não tem valor, seja um objeto, um evento esportivo, um trabalho, um direito etc. Porém, e para falar somente contra um tipo específico de lucro, os lucros exorbitantes como os que a FIFA, os empreiteiros e anunciantes ganharão com a Copa, dirijo minha reflexão (e minha ojeriza) para a relação direta – insofismável e que fica ainda mais clara nestes casos – entre riqueza e miséria, entre concentração de renda e produção da indignidade, entre concentração do poder econômico e fragilização da democracia, de direitos, da liberdade de expressão, da diversidade, do dissenso, do direito de pensar diferente. Todos os anunciantes, esse clima, todo o aparato policial repressor é para nos fazer – e nos obrigar –crer que somos todos um só, que a Copa é do Mundo, de todo mundo, que sua realização é a festa de todos os brasileiros, a festa da nação.

Não acho. E sabemos – você e eu – ela não é. Existem festas que não merecem comemoração.

Eventos como a Copa do Mundo, organizados da forma como são organizados, são máquinas de produzir miséria. Seu efeito é concentrar ainda mais a renda, a capacidade de decisão e de influência nas mãos de algumas poucas pessoas. Em outras palavras, seu efeito é concentrar ainda mais a oportunidade de acesso a diversos recursos, materiais ou simbólicos; aumentar a distância e a diferença social e espacial entre as pessoas; é minar a capacidade de autonomia, diminuindo ainda mais o poder de alguns sujeitos de influenciar decisões sobre a vida pública. Alguém soube de alguma obra que deixou de ser feita por que durante a consulta à comunidade afetada a mesma decidiu por sua não realização? A realização da Copa é um golpe na construção da democracia e uma afronta covarde ao combate à desigualdade social.

É este o ponto. Não é de futebol, é disto que não gosto, é com isto que não compactuo, é com isto que decidi não contribuir. Estas coisas estão juntas, interligadas, unidas, inter-relacionadas, uma é a condição necessária da outra: o processo que produz yellow blocks é exatamente o mesmo processo que produz Ocupações. Não é só uma festa, não é só um jogo, não são apenas duas – e inocentes – cores.

E aqui, você sabe disso! Isso, você mesmo, é para você que eu escrevo.

Porém, se quer se fazer de desentendido e, apesar de saber disso tudo, prefere unir-se à turma do “já que vai ter Copa, não me resta senão torcer pela seleção”; ou ainda, se é daqueles que não gosta de futebol, mas a desculpa de que a festa é boa justifica sua ida à Savassi, vão aí algumas dicas para que sua consciência não pese – tanto:

1.     Esqueça a indignação com que no ano passado você, na mesa do Maleta, falava do assassinato do Amarildo. Afinal, o aumento da repressão policial nas favelas e periferias, cujas UPPS cariocas são a melhor representação, são uma necessidade deste tipo de evento em que você festeja.
2.     Esqueça o apoio que, de casa, das ruas ou do Facebook, você ofereceu às manifestações de junho do ano passado, muitas vezes comprando brigas e discussões complicadas com seus familiares apenas para explicar-lhes que manifestar é um direito, hoje cassado por ações como a estratégia do cerco, praticada pela Polícia Militar de Minas Gerais sob o argumento de que as manifestações não podem atrapalhar a (sua) festa – a da Savassi.
3.     Para vestir verde e amarelo, esqueça quanto medo lhe causou a fase Coxinha das manifestações de junho do ano passado. Evite se lembrar que, nesta fase, você que desde o início foi para as ruas quase deixou de ir por receio de estar engrossando um coro parecido com o das vésperas de 1° de abril de 1964.
4.     Pare de ler sobre Ocupações. Acredito que não seja muito aconchegante relembrar que as diversas obras de infraestrutura realizadas para a Copa promoveram o deslocamento e o desalojamento compulsório de milhares de pessoas. Não tire os olhos da TV, algumas destas pessoas podem estar catando latinhas ao seu lado, acredito que vê-las pode lhe causar algum desconforto. Dica: guardadores de carro – negros principalmente – podem te remeter à lembranças semelhantes. Evite-os, procure um estacionamento.
5.     Não olhe para a TV durante o “Show do intervalo”, já que você pode se deparar com Ronaldo, agora como comentarista, e daí se dar conta de que foi ele quem disse “que não se faz Copa do Mundo com hospitais”. Talvez assim, não o vendo, seja mais difícil se lembrar de que no dia que ouviu esta frase, não sei se no maleta ou fumando maconha na casa de um amigo, depois de chamá-lo de babaca, você disse ou pensou: “que não se faça então a maldita Copa, ora”. Dica para este dia: pensar que, já que tá tendo, e já que estou aqui mesmo, vamos festejar, o segundo tempo vem aí! Haja coração!
6.     Esqueça o acesso de raiva de que você era tomado(a) quando lia alguma notícia sobre estrangeiros que, aproveitando o ensejo, planejavam vir ao Brasil em busca de turismo sexual. Dica: ao final dos jogos de sábado, desligue a TV rapidamente, pois alguma promoção do programa Caldeirão do Hulk pode sutilmente remeter a este assunto perverso.
7.     Se você teve a sorte, digo, a oportunidade, de conseguir comprar ingresso para assistir a algum jogo no Mineirão, quando estiver dentro do estádio evite pensamentos do tipo “nossa, como algo tão grande pode ser construído”. Há o risco de que, após este tipo de reflexão, a imagem de haitianos, presidiários, e outros tipos (negros) de subempregados venha à sua retina, azedando o tropeiro que é lhe servido pela senhora (negra) que recebe, no máximo, o dobro do valor do seu ingresso. Dica: para não se constranger evite comer no estádio.

Portanto, fique tranquilo. Chame os amigos, assista ao jogo, vá ao campo, vá para a Savassi. Afinal, é só mais um jogo do Brasil. Tire sua selfe, compartilhe-a no Facebook e, no dia seguinte, leia a Nova Democracia, o Pragmatismo Político, a Revista Fórum ou a Caros Amigos, o Sakamoto ou a Eliane Brum com a plena sensação, convicção e certeza de que aquilo tudo de que falam estas pessoas e jornais não tem absolutamente nada a ver contigo. Você não faz parte daquilo. Aliás, se faz, é só um pouquinho, e que mal há gostar de futebol ou de festa!? Todo futebol é futebol, toda festa é festa, apenas, e nada mais que isso.

Não sei vocês, eu vou continuar manifestando na rua, na chuva ou na fazenda; torcendo pelo Chile, para a Colômbia, para a Argentina ou para qualquer coisa que atrapalhe a celebração deles e a de vocês, que desta festa participam. Desse um só, eu não quero fazer parte.

A mão que não pensa


Cláudio H. Pessoa Brandão – claudiohpb@gmail.com

Há 43 anos aconteceu o maior acidente da construção civil brasileira, que ficou conhecido como Tragédia da Gameleira. 69 operários que trabalhavam na construção do parque de exposições de Belo Horizonte, o Expominas, foram soterrados na queda de um dos pavilhões. De acordo com historiadores que se debruçaram sobre o caso, os operários tinham plena consciência da possibilidade de um desabamento, pois tinham notado várias rachaduras pelas paredes e colunas e frequentemente ouviam estalos emitidos pelas estruturas. Os peões tentaram avisar aos engenheiros sobre os perigos, mas quem ousaria criticar o desenho de Oscar Niemeyer ou colocar em dúvida os conhecimentos científicos do engenheiro-chefe? Os trabalhadores que questionavam a obra eram ameaçados de demissão sumária e até prisão; eram os anos de chumbo do regime militar. Os cálculos matemáticos dos engenheiros garantiam a continuidade da obra à revelia da experiência prática dos operários. Os homens de ciência autorizavam o ritmo frenético das obras organizadas pelo autoritarismo hierárquico. Mais um episódio em que o “intelectual” se sobrepõe ao “manual”.

A polarização trabalho intelectual versus trabalho manual é imemorial, mas são conhecidas as interpretações que lançam suas raízes na antiguidade ocidental. O ócio seria o lugar dos filósofos ou daqueles que se dedicavam à política, consideradas “atividades intelectuais”; o negócio (negação do ócio) seria o lugar do trabalhador, do artesão, do escravo, ou seja, o lugar daqueles dedicados às “atividades manuais”. A Igreja Católica, salvo as exceções de algumas correntes teológicas no interior da instituição, comumente via o trabalho manual como condição de penitência, de castigo. A dimensão material, o mundano ou profano, se contrapõe ao sagrado, alcançável por meio do esforço espiritual. A revelação divina se daria no interior do ser, que deveria resistir às tentações do corpo. O corporal e, por consequência, a atividade manual ficam em segundo plano nos termos da espiritualidade. A cultura que se convencionou chamar de modernidade passa a difundir o ideal do domínio do ser humano sobre o meio material não somente por meio da fé, mas também por meio da razão. A natureza vista como templo passa a ser também laboratório. As atividades mais voltadas para o especulativo, tal como a filosofia e o direito, passam a competir com as escolas de engenharia. Os engenheiros passam a ser formados em um sistema de ensino laico com vistas a desenvolver meios garantidores da ordem moral e do progresso material da sociedade. A medicina se torna mais prática nesse mesmo movimento, o médico passa também a ser cirurgião, atividade antes considerada como degradante por causa do contato direto com as secreções corporais e com as vísceras. Aos poucos a atividade intelectual desinteressada, considerada “filosófica demais”, vai perdendo espaço para uma atividade intelectual cada vez mais pragmática, que responderia com mais eficiência para a modernização e desenvolvimento econômico das sociedades.

Vários cientistas sociais sustentam a ideia de que a desvalorização dos trabalhos manuais no Brasil, tal como pode ter ocorrido na Tragédia da Gameleira, é atenuada pela herança dos quase 400 anos de escravidão. De fato, o país se organizou como uma sociedade de corte e o status era fator de diferenciação social. Como as atividades manuais traziam o estigma de coisa de escravo, dedicar-se as ditas atividades intelectuais seria fator de enobrecimento. Os artesãos que se organizavam em corporações até poderiam galgar cargos de relevância para a comunidade, mas sempre ocupariam lugares menores em relação aos bacharéis. A sua origem social, a sua educação e a cor da sua pele eram fatores dificultadores da expressão de suas opiniões em uma sociedade de doutores brancos.

Quero com o dito até aqui encaminhar minhas reflexões para dois aspectos: (1) o desvalor para com a atividade tida como meramente intelectual, por não dedicar-se a resolução de situações práticas voltadas para o mundo da produção mercadológica; (2) a falsa dicotomia trabalho intelectual-manual que deslegitima o trabalhador não escolarizado ou não acadêmico. Para isso, refletirei a partir um episódio ocorrido comigo recentemente.

O programa de mestrado ao qual faço parte como estudante esteve pleiteando a abertura do curso de doutorado, para isso uma comissão nomeada pelo Conselho de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (CAPES) fez uma avaliação presencial da instituição, o que incluía um bate-papo com os mestrandos. As professoras avaliadoras nos deixaram muito à vontade para fazer quaisquer tipos de perguntas sobre a pós-graduação no Brasil. Tão logo tive chance perguntei para as mesmas o motivo pelo qual bolsistas de iniciação científica, de mestrado e doutorado não tem direitos trabalhistas, tal como licença maternidade e os demais benefícios do INSS; a resposta: “Por que vocês são estudantes”. Ora, ser estudante é entendido como uma atividade intelectual desinteressada, não voltada para o mundo da produção de bens consumíveis; ser estudante não gera riqueza. Por isso, não são enquadrados como categoria profissional, não são trabalhadores. Basta receber uma bolsa-auxílio para sobreviver, e aqui está subjacente o entendimento de que é necessário somente um “auxílio financeiro”, como se todos aqueles que se dedicam às pesquisas científicas fosse oriundos de famílias ricas que tivessem condições de bancar as suas elucubrações. Ademais, o que acontece em um grande número de instituições de ensino é que esse auxílio, uma vez que você é selecionado para recebê-lo, impede que você tenha qualquer vínculo empregatício com carteira assinada. Você recebe um auxílio para dedicar-se exclusivamente à pesquisa. Me parece uma permanência da cultura bacharelesca da sociedade de corte, cujas instituições de ensino eram voltadas tão somente para os mais abastados, e aqueles "sem meios" recebiam somente um filantrópico auxílio financeiro. Parece que se formar cientista no Brasil ainda não é coisa para o pobre.

O estudante de mestrado ou doutorado não é regulado necessariamente pelo tempo do trabalho da indústria. Não são poucas as dificuldades para explicar para as pessoas o que “eu faço da vida”. Ciência é uma atividade morosa, difícil e extremamente cansativa. Raramente encontramos estudantes que conseguem ter disciplina para não passar fins de semanas inteiros na frente do computador num verdadeiro "artesanato intelectual", sem falar das prospecções para coletas de dados que se dão nos lugares mais diversos e adversos. Parece que também por não se guiar pela racionalização temporal do mundo do trabalho, por não necessariamente bater ponto, o estudante não é considerado trabalhador. Não estou aqui defendendo que o pesquisador deverá ser enquadrado nos indicadores de produção tal como ocorrem nas indústrias aos moldes da gestão da qualidade; é perigoso cair no erro de querer a ciência regulada por valores análogos aos do mercado. Da mesma forma, um pedreiro que não necessariamente se enquadra no tempo do relógio de ponto comumente é tachado de preguiçoso. Também não estou aqui defendendo aqueles que por ventura não arquem com os prazos combinados, mas quero chamar atenção para a naturalização de um certo tempo do trabalho. É como se as 8 horas (no mínimo) de trabalho fossem tão naturais quanto o nascer do sol. O cumprimento do tempo artificial da indústria hoje parece ser a condição básica para considerar os sujeitos como trabalhadores. Seriam trabalhadores somente aqueles que se submetem as insalubres, longas e pesadas jornadas de trabalho? É uma irracionalidade querer um tempo de trabalho que me permita viver com saúde e com tempo pra me dedicar a outras atividades que não somente aquelas que visam produções voltadas para o lucro? Por não objetivar a produção imediata de bens consumíveis o estudante-cientista vinculado formalmente às instituições de produção de conhecimento não é visto como trabalhador, a ponto de não ter qualquer tipo de seguridade social.

O fato da atividade estudantil ser chamada de intelectual polariza essa com as ditas atividades manuais, como se um marceneiro, uma costureira ou um pedreiro não utilizassem do intelecto para trabalhar. E aqui há o enaltecimento do conhecimento escolar, como se ele fosse o único legítimo. O estatuto das ciências se sobrepõe aos saberes das experiências daqueles que raciocinam por meio de parâmetros não escolares, muitas vezes elaborados de forma autodidata ou transmitidos via oralidade e demonstrações práticas. Cotidianamente os doutores utilizam do status dos seus diplomas para se sobreporem aos trabalhadores não escolarizados ou não acadêmicos. Ao mesmo tempo em que ainda parece existir essa hierarquia entre “intelectuais” e “trabalhadores”, sempre em desfavor do segundo, há o reconhecimento de sua importância. Todos precisam de pedreiros, isso é um fato cabal, mas é comum a seguinte comparação: “É um absurdo um pedreiro ganhar o dobro que um professor...” É claro que os professores brasileiros merecem um salário com um mínimo de dignidade, mas isso não permite desqualificar um saber-fazer que não é diplomado academicamente. Os pedreiros são essenciais para a sociedade e devem ser tratados tal e qual. Mas somente os pedreiros deveriam falar por eles mesmos, há aqui o risco dos "intelectuais" se sentirem no direito de falar pelos "trabalhadores", em um claro vanguardismo. É preciso que todos reconheçam os seus lugares singulares de trabalhadores, todas as categorias, ombro a ombro.

Enquanto isso, vários operários se acidentaram, foram mutilados e morreram durante as construções dos estádios brasileiros que estão servindo à FIFA, mas sem problemas, os engenheiros deram todas as desculpas argumentadas por meio da sua matemática. Enquanto isso, milhares de pessoas ultimamente  se dirigem para a Funfest, a festa da Copa do Mundo, realizada no Expominas em Belo Horizonte, o mesmo da Tragédia da Gameleira. Não há ali um memorial dedicado a lembrança daqueles 69 operários mutilados e mortos. Enquanto isso, eu, um intelectualzinho romântico e idealista, me dirijo para as manifestações Anti-Copa, tendo o trabalho de sonhar. E todos aqueles estudantes que se dão ao trabalho de protestar, de se envolverem em movimentos políticos ao lado de trabalhadores e de fazer de suas atividades intelectuais meios para repensar a sociedade, comumente são tachados de vagabundos por não estarem trabalhando