- Êpa, essa viagem foi muito rápida! - Tô com muito calor! Essa roupa laranja é um inferno. - C viu? Quase morreu. Foi um grande estouro. - Os portões da escolha foi aberto. Saiu um monte de gente de uma vez. Encavalou. - Frita pastel e coxinha Rute. - Vô leva esse pilantra no pau! Zé subiu no andaime. Maria chegou na casa de Andreia para cuidar do Pedrinho. Raimundo acabou desistindo de faltar ao trabalho. Laura faltou e comprou um atestado na praça 7. Ninguém aqui é vítima. Ninguém aqui sou eu.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Somos todos um só: você, a FIFA, a UPP e a miséria


Tiago



No país do futebol, em tempos de Copa no país da Copa, é dolorosamente difícil ser do contra, sobretudo contra a Copa. Não é fácil não querer ir a algum lugar para assistir ao jogo do Brasil, não querer torcer pelo Brasil e, pior ainda, afirmar não torcer pelo Brasil. E aí, onde é que você assistiu ao jogo? E a Savassi, tá um festão lá, né...tem passado por lá? O que, você torceu para o Chile, como assim!?

Sinceramente, nem foi para o Chile que torci, mas contra o Brasil, contra o que significa este Brasil, contra o que significa uma festa na Savassi neste momento, contra o que esta festa celebra, e a favor daquilo que é preciso esquecer para se celebrar por lá neste momento, principalmente por lá. (Na verdade, a Savassi em si, e em qualquer época do ano, é a própria celebração de diversos motivos que me fazem ser contra a Copa – como a desigualdade, a condição necessária de sua existência. A Copa apenas potencializa essa representação nefasta, aliás, a Copa lhe cai muito bem).

Mas o fato é que depois de tudo que li, vi, e assisti nos últimos anos não dá para torcer. Não sei vocês, mas para mim não dá para participar. E olha – e quem me conhece sabe – eu gosto de futebol.

A questão é que isto não é só futebol. Como eu já disse, de futebol eu gosto, e muito. Mas esta Copa é mais que isso, e não é preciso muito esforço para notar. As propagandas e toda a avalanche publicitária mostram claramente o que de fato ela é: um negócio. Aliás, um negócio extremamente lucrativo. Mas qual problema há em lucrar? Afinal, o mundo é assim, você pode pensar. Para mim, há vários, sobretudo se pensarmos na mentalidade que sustenta a ideia do lucro: o pressuposto de que tudo é capital, ou seja, uma riqueza que serve para produzir mais riqueza. Se a coisa não serve a isso ela não tem valor, seja um objeto, um evento esportivo, um trabalho, um direito etc. Porém, e para falar somente contra um tipo específico de lucro, os lucros exorbitantes como os que a FIFA, os empreiteiros e anunciantes ganharão com a Copa, dirijo minha reflexão (e minha ojeriza) para a relação direta – insofismável e que fica ainda mais clara nestes casos – entre riqueza e miséria, entre concentração de renda e produção da indignidade, entre concentração do poder econômico e fragilização da democracia, de direitos, da liberdade de expressão, da diversidade, do dissenso, do direito de pensar diferente. Todos os anunciantes, esse clima, todo o aparato policial repressor é para nos fazer – e nos obrigar –crer que somos todos um só, que a Copa é do Mundo, de todo mundo, que sua realização é a festa de todos os brasileiros, a festa da nação.

Não acho. E sabemos – você e eu – ela não é. Existem festas que não merecem comemoração.

Eventos como a Copa do Mundo, organizados da forma como são organizados, são máquinas de produzir miséria. Seu efeito é concentrar ainda mais a renda, a capacidade de decisão e de influência nas mãos de algumas poucas pessoas. Em outras palavras, seu efeito é concentrar ainda mais a oportunidade de acesso a diversos recursos, materiais ou simbólicos; aumentar a distância e a diferença social e espacial entre as pessoas; é minar a capacidade de autonomia, diminuindo ainda mais o poder de alguns sujeitos de influenciar decisões sobre a vida pública. Alguém soube de alguma obra que deixou de ser feita por que durante a consulta à comunidade afetada a mesma decidiu por sua não realização? A realização da Copa é um golpe na construção da democracia e uma afronta covarde ao combate à desigualdade social.

É este o ponto. Não é de futebol, é disto que não gosto, é com isto que não compactuo, é com isto que decidi não contribuir. Estas coisas estão juntas, interligadas, unidas, inter-relacionadas, uma é a condição necessária da outra: o processo que produz yellow blocks é exatamente o mesmo processo que produz Ocupações. Não é só uma festa, não é só um jogo, não são apenas duas – e inocentes – cores.

E aqui, você sabe disso! Isso, você mesmo, é para você que eu escrevo.

Porém, se quer se fazer de desentendido e, apesar de saber disso tudo, prefere unir-se à turma do “já que vai ter Copa, não me resta senão torcer pela seleção”; ou ainda, se é daqueles que não gosta de futebol, mas a desculpa de que a festa é boa justifica sua ida à Savassi, vão aí algumas dicas para que sua consciência não pese – tanto:

1.     Esqueça a indignação com que no ano passado você, na mesa do Maleta, falava do assassinato do Amarildo. Afinal, o aumento da repressão policial nas favelas e periferias, cujas UPPS cariocas são a melhor representação, são uma necessidade deste tipo de evento em que você festeja.
2.     Esqueça o apoio que, de casa, das ruas ou do Facebook, você ofereceu às manifestações de junho do ano passado, muitas vezes comprando brigas e discussões complicadas com seus familiares apenas para explicar-lhes que manifestar é um direito, hoje cassado por ações como a estratégia do cerco, praticada pela Polícia Militar de Minas Gerais sob o argumento de que as manifestações não podem atrapalhar a (sua) festa – a da Savassi.
3.     Para vestir verde e amarelo, esqueça quanto medo lhe causou a fase Coxinha das manifestações de junho do ano passado. Evite se lembrar que, nesta fase, você que desde o início foi para as ruas quase deixou de ir por receio de estar engrossando um coro parecido com o das vésperas de 1° de abril de 1964.
4.     Pare de ler sobre Ocupações. Acredito que não seja muito aconchegante relembrar que as diversas obras de infraestrutura realizadas para a Copa promoveram o deslocamento e o desalojamento compulsório de milhares de pessoas. Não tire os olhos da TV, algumas destas pessoas podem estar catando latinhas ao seu lado, acredito que vê-las pode lhe causar algum desconforto. Dica: guardadores de carro – negros principalmente – podem te remeter à lembranças semelhantes. Evite-os, procure um estacionamento.
5.     Não olhe para a TV durante o “Show do intervalo”, já que você pode se deparar com Ronaldo, agora como comentarista, e daí se dar conta de que foi ele quem disse “que não se faz Copa do Mundo com hospitais”. Talvez assim, não o vendo, seja mais difícil se lembrar de que no dia que ouviu esta frase, não sei se no maleta ou fumando maconha na casa de um amigo, depois de chamá-lo de babaca, você disse ou pensou: “que não se faça então a maldita Copa, ora”. Dica para este dia: pensar que, já que tá tendo, e já que estou aqui mesmo, vamos festejar, o segundo tempo vem aí! Haja coração!
6.     Esqueça o acesso de raiva de que você era tomado(a) quando lia alguma notícia sobre estrangeiros que, aproveitando o ensejo, planejavam vir ao Brasil em busca de turismo sexual. Dica: ao final dos jogos de sábado, desligue a TV rapidamente, pois alguma promoção do programa Caldeirão do Hulk pode sutilmente remeter a este assunto perverso.
7.     Se você teve a sorte, digo, a oportunidade, de conseguir comprar ingresso para assistir a algum jogo no Mineirão, quando estiver dentro do estádio evite pensamentos do tipo “nossa, como algo tão grande pode ser construído”. Há o risco de que, após este tipo de reflexão, a imagem de haitianos, presidiários, e outros tipos (negros) de subempregados venha à sua retina, azedando o tropeiro que é lhe servido pela senhora (negra) que recebe, no máximo, o dobro do valor do seu ingresso. Dica: para não se constranger evite comer no estádio.

Portanto, fique tranquilo. Chame os amigos, assista ao jogo, vá ao campo, vá para a Savassi. Afinal, é só mais um jogo do Brasil. Tire sua selfe, compartilhe-a no Facebook e, no dia seguinte, leia a Nova Democracia, o Pragmatismo Político, a Revista Fórum ou a Caros Amigos, o Sakamoto ou a Eliane Brum com a plena sensação, convicção e certeza de que aquilo tudo de que falam estas pessoas e jornais não tem absolutamente nada a ver contigo. Você não faz parte daquilo. Aliás, se faz, é só um pouquinho, e que mal há gostar de futebol ou de festa!? Todo futebol é futebol, toda festa é festa, apenas, e nada mais que isso.

Não sei vocês, eu vou continuar manifestando na rua, na chuva ou na fazenda; torcendo pelo Chile, para a Colômbia, para a Argentina ou para qualquer coisa que atrapalhe a celebração deles e a de vocês, que desta festa participam. Desse um só, eu não quero fazer parte.

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