Tiago
No país do futebol, em tempos de Copa no país
da Copa, é dolorosamente difícil ser do contra, sobretudo contra a Copa. Não é
fácil não querer ir a algum lugar para assistir ao jogo do Brasil, não querer
torcer pelo Brasil e, pior ainda, afirmar não torcer pelo Brasil. E aí, onde é que você assistiu ao jogo? E a
Savassi, tá um festão lá, né...tem passado por lá? O que, você torceu para o
Chile, como assim!?
Sinceramente, nem foi para o Chile que torci,
mas contra o Brasil, contra o que significa este Brasil, contra o que significa
uma festa na Savassi neste momento, contra o que esta festa celebra, e a favor
daquilo que é preciso esquecer para se celebrar por lá neste momento,
principalmente por lá. (Na verdade, a Savassi em si, e em qualquer época do
ano, é a própria celebração de diversos motivos que me fazem ser contra a Copa
– como a desigualdade, a condição necessária de sua existência. A Copa apenas potencializa
essa representação nefasta, aliás, a Copa lhe cai muito bem).
Mas o fato é que depois de tudo que li, vi,
e assisti nos últimos anos não dá para torcer. Não sei vocês, mas para mim não dá
para participar. E olha – e quem me conhece sabe – eu gosto de futebol.
A questão é que isto não é só futebol. Como
eu já disse, de futebol eu gosto, e muito. Mas esta Copa é mais que isso, e não
é preciso muito esforço para notar. As propagandas e toda a avalanche
publicitária mostram claramente o que de fato ela é: um negócio. Aliás, um
negócio extremamente lucrativo. Mas qual problema há em lucrar? Afinal, o mundo
é assim, você pode pensar. Para mim, há vários, sobretudo se pensarmos na
mentalidade que sustenta a ideia do lucro: o pressuposto de que tudo é capital,
ou seja, uma riqueza que serve para produzir mais riqueza. Se a coisa não serve
a isso ela não tem valor, seja um objeto, um evento esportivo, um trabalho, um
direito etc. Porém, e para falar somente contra um tipo específico de lucro, os
lucros exorbitantes como os que a FIFA, os empreiteiros e anunciantes ganharão
com a Copa, dirijo minha reflexão (e minha ojeriza) para a relação direta – insofismável e que fica ainda mais clara nestes
casos – entre riqueza e miséria, entre concentração de renda e produção
da indignidade, entre concentração do poder econômico e fragilização da
democracia, de direitos, da liberdade de expressão, da diversidade, do dissenso,
do direito de pensar diferente. Todos os anunciantes, esse clima, todo o
aparato policial repressor é para nos fazer – e nos obrigar –crer que somos todos um só, que a Copa é do Mundo, de todo mundo, que sua realização é a festa de todos os brasileiros, a festa da nação.
Não acho. E sabemos – você e eu – ela não
é. Existem festas que não merecem comemoração.
Eventos como a Copa do Mundo, organizados
da forma como são organizados, são máquinas de produzir miséria. Seu efeito é
concentrar ainda mais a renda, a capacidade de decisão e de influência nas mãos
de algumas poucas pessoas. Em outras palavras, seu efeito é concentrar ainda
mais a oportunidade de acesso a diversos recursos, materiais ou simbólicos;
aumentar a distância e a diferença social e espacial entre as pessoas; é minar a
capacidade de autonomia, diminuindo ainda mais o poder de alguns sujeitos de
influenciar decisões sobre a vida pública. Alguém soube de alguma obra que
deixou de ser feita por que durante a consulta à comunidade afetada a mesma
decidiu por sua não realização? A realização da Copa é um golpe na construção
da democracia e uma afronta covarde ao combate à desigualdade social.
É este o ponto. Não é de futebol, é disto
que não gosto, é com isto que não compactuo, é com isto que decidi não
contribuir. Estas coisas estão juntas, interligadas, unidas, inter-relacionadas,
uma é a condição necessária da outra:
o processo que produz yellow blocks é
exatamente o mesmo processo que produz Ocupações. Não é só uma festa, não é só
um jogo, não são apenas duas – e inocentes – cores.
E aqui, você sabe disso! Isso, você mesmo,
é para você que eu escrevo.
Porém, se quer se fazer de desentendido e,
apesar de saber disso tudo, prefere unir-se à turma do “já que vai ter Copa, não me resta senão torcer pela seleção”; ou
ainda, se é daqueles que não gosta de futebol, mas a desculpa de que a festa é
boa justifica sua ida à Savassi, vão aí algumas dicas para que sua consciência
não pese – tanto:
1.
Esqueça a indignação com que no
ano passado você, na mesa do Maleta, falava do assassinato do Amarildo. Afinal,
o aumento da repressão policial nas favelas e periferias, cujas UPPS cariocas
são a melhor representação, são uma necessidade deste tipo de evento em que você festeja.
2.
Esqueça o apoio que, de casa,
das ruas ou do Facebook, você ofereceu às manifestações de junho do ano
passado, muitas vezes comprando brigas e discussões complicadas com seus
familiares apenas para explicar-lhes que manifestar é um direito, hoje cassado
por ações como a estratégia do cerco, praticada pela Polícia Militar de Minas
Gerais sob o argumento de que as manifestações não podem atrapalhar a (sua) festa
– a da Savassi.
3.
Para vestir verde e amarelo,
esqueça quanto medo lhe causou a fase Coxinha das manifestações de junho do ano
passado. Evite se lembrar que, nesta fase, você que desde o início foi para as
ruas quase deixou de ir por receio de estar engrossando um coro parecido com o
das vésperas de 1° de abril de 1964.
4.
Pare de ler sobre Ocupações.
Acredito que não seja muito aconchegante relembrar que as diversas obras de
infraestrutura realizadas para a Copa promoveram o deslocamento e o
desalojamento compulsório de milhares de pessoas. Não tire os olhos da TV,
algumas destas pessoas podem estar catando latinhas ao seu lado, acredito que
vê-las pode lhe causar algum desconforto. Dica: guardadores de carro – negros
principalmente – podem te remeter à lembranças semelhantes. Evite-os, procure
um estacionamento.
5.
Não olhe para a TV durante o
“Show do intervalo”, já que você pode se deparar com Ronaldo, agora como
comentarista, e daí se dar conta de que foi ele quem disse “que não se faz Copa do Mundo com hospitais”. Talvez assim, não o
vendo, seja mais difícil se lembrar de que no dia que ouviu esta frase, não sei se no maleta ou fumando maconha na
casa de um amigo, depois de chamá-lo de babaca, você disse ou pensou: “que não se faça então a maldita Copa, ora”.
Dica para este dia: pensar que, já que tá tendo, e já que estou aqui mesmo, vamos festejar, o segundo tempo vem aí! Haja
coração!
6.
Esqueça o acesso de raiva de
que você era tomado(a) quando lia alguma notícia sobre estrangeiros que, aproveitando
o ensejo, planejavam vir ao Brasil em busca de turismo sexual. Dica: ao final
dos jogos de sábado, desligue a TV rapidamente, pois alguma promoção do
programa Caldeirão do Hulk pode sutilmente
remeter a este assunto perverso.
7.
Se você teve a sorte, digo, a
oportunidade, de conseguir comprar ingresso para assistir a algum jogo no
Mineirão, quando estiver dentro do estádio evite pensamentos do tipo “nossa, como algo tão grande pode ser
construído”. Há o risco de que, após este tipo de reflexão, a imagem de
haitianos, presidiários, e outros tipos (negros) de subempregados venha à sua retina,
azedando o tropeiro que é lhe servido pela senhora (negra) que recebe, no
máximo, o dobro do valor do seu ingresso. Dica: para não se constranger evite
comer no estádio.
Portanto, fique tranquilo. Chame os amigos,
assista ao jogo, vá ao campo, vá para a Savassi. Afinal, é só mais um jogo do
Brasil. Tire sua selfe, compartilhe-a
no Facebook e, no dia seguinte, leia a Nova Democracia, o Pragmatismo Político,
a Revista Fórum ou a Caros Amigos, o Sakamoto ou a Eliane Brum com a plena sensação, convicção e certeza de que aquilo
tudo de que falam estas pessoas e jornais não tem absolutamente nada a ver
contigo. Você não faz parte daquilo. Aliás, se faz, é só um pouquinho, e que
mal há gostar de futebol ou de festa!? Todo futebol é futebol, toda festa é
festa, apenas, e nada mais que isso.
Não sei vocês, eu vou continuar
manifestando na rua, na chuva ou na fazenda; torcendo pelo Chile, para a Colômbia,
para a Argentina ou para qualquer coisa que atrapalhe a celebração deles e a de
vocês, que desta festa participam. Desse um só, eu não quero fazer parte.
Belíssimo texto Tiago… faço dessas as minhas palavras!!!
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