- Êpa, essa viagem foi muito rápida! - Tô com muito calor! Essa roupa laranja é um inferno. - C viu? Quase morreu. Foi um grande estouro. - Os portões da escolha foi aberto. Saiu um monte de gente de uma vez. Encavalou. - Frita pastel e coxinha Rute. - Vô leva esse pilantra no pau! Zé subiu no andaime. Maria chegou na casa de Andreia para cuidar do Pedrinho. Raimundo acabou desistindo de faltar ao trabalho. Laura faltou e comprou um atestado na praça 7. Ninguém aqui é vítima. Ninguém aqui sou eu.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Da banalidade do mal a efemeridade dos atos – é preciso pensar!

João Henrique de Sousa

Jogo do Barcelona contra o Villareal. O lateral-direito do Barcelona se prepara para bater um escanteio, quando de repente um torcedor joga uma banana no gramado. Em uma atitude sem muita reflexão, creio eu, dado o frenesi do jogo, o jogador se dirige até a banana, descasca-a e a come. Banana para o macaco? Sim, esse era o recado do torcedor, que acompanhava o jogo no estádio, em pleno século XXI, em um tempo em que o preconceito contra o negro deveria ser alvo de vergonha - deveria.
A cena é emblemática e frequentemente vista no cotidiano dos esportes, ou melhor, no cotidiano (e ponto). Não quero aqui me deter especificamente na questão do preconceito ou em como o negro vem sofrendo ao longo da humanidade (Humanidade?). Gostaria de produzir um estopim para se pensar a banalidade desses atos e como são efêmeros. O mal que se exerce sem pensar é banal, nos diz Hannah Arendt. A incapacidade de pensar produz atos que conduzem à superficialidade da reflexão. Digo: negros são como macacos, macacos comem banana, negros devem comer banana. E, de geração em geração,esse gerenciamento de condutas é reproduzido.
Estou em defesa do pensamento. É preciso pensar! Talvez, mais do que nunca, caminhamos em uma direção em que o pensar se coloca como única solução para alocar o homo, quiçá não mais sapiens, ao status de humano. Pensar, para que se evite o mal. Não estou falando do mal que a religião prega. Tão pouco do mal propagado pelos perversos, que ultrapassam a lei como imperativo para gozar a vida. Digo do mal que exercemos. O mal que nos faz olhar pra trás e repudiar os tempos de escravidão, mas ao mesmo tempo nos faz agredir e amarrar, nos dias atuais, um adolescente, fruto desta sociedade, a um poste. “Sim, ele era culpado”. Diria a mente fruto da banalidade do mal.
Resistir é necessário diante de uma sociedade que caminha a passos lentos, ora retrocessos e, ingenuamente, crê avançar em direção da civilização. Barbáries seguidas de barbáries, bananas seguidas de bananas. E há quem diga, defenda e levante a causa de que todos nós somos macacos. Resta-nos um pouco de consciência (quem sabe decência) que nos faz desconfiar do discurso midiático, que sempre quer sua fatia do bolo, ainda que esse se produza em meio à desgraça.
Em outros tempos Nietzsche diria que todos nós somos humanos. Mas, o humano, demasiado humano, que rompeu as realidades eternas e as verdades absolutas quase não existe mais. Assistimos cenas como as relatadas aqui e basta um comercial para que nossa memória associe outra informação e apague aquela cena. Qual cena mesmo? Ah sim, estreia da novela das seis.
Assim como o mal é banal, os atos são efêmeros. Esquecemos! O povo esquece. E, por esquecer, repete-se novamente aquilo que outrora fora assustador. Ora, não devemos nos levar pela superficialidade das coisas. É preciso pensar! (Eis os mantra da minha reflexão). No imediatismo do cotidiano, nas centenas de atividades que somos aturdidos, é parando e pensando que atingiremos um modo de vida crítico, ético e coerente com o ser (estar na condição de) humano.
O fato é que para pensar devemos estar só. E em uma sociedade na qual a busca pela completude se torna questão de vida e/ou morte, ninguém deseja estar só. Confundem essa necessidade com a solidão, sendo essa uma completa ausência de tudo, inclusive de si mesmo. Mas, estar só circunscreve o sujeito na dimensão de estar consigo mesmo e, estando consigo mesmo, se torna capaz de refletir sobre seus desejos, suas ações e sua conduta. É preciso entrar em desacordo consigo mesmo e promover a desconstrução das verdades arquitetadas ao longo da história, dos preconceitos engendrados ao longo da vida e do engessamento produzindo por meio de ensinamentos descontextualizados da realidade sociocultural.
Pensar é investigar a parte oculta do icerberg e, para tal, faz-se necessário o desprendimento das formas, daquilo que está dado. É preciso dirigir o olhar ao outro e perceber que o outro é humano, sem ser macaco; é sujeito, sem ser objeto. Recorro à Arendt, novamente, para dizer que são incapazes de se manterem na companhia de si mesmos os que se sucumbem à condutas mediante a ausência de pensamento. São seres que caminham na superficialidade da vida e reproduzem modos de assujeitamento e práticas que inviabilizam a concretização da liberdade.

terça-feira, 22 de abril de 2014

A seleção começa na escola

Charles

     Aldous Huxley escreveu o livro “Admirável Mundo Novo”, em 1932, onde o autor descreve uma sociedade em que a reprodução humana é artificial e os seres humanos são pré-condicionados biologicamente e condicionados psicologicamente, com o objetivo de viverem em uma sociedade harmoniosa. Outro ponto que se destaca nessa sociedade é que a função a se desempenhar em cada grupo social é estabelecida durante a produção biológica e o condicionamento psicológico, a fim de que também o mercado de trabalho seja ocupado por cada grupo produzido previamente.
      A obra de Huxley em vários pontos é extremamente atual, se a compararmos a sociedade brasileira. Ao tecer algumas palavras sobre a estrutura social brasileira, gostaria de fazer um paralelo com o livro de Huxley, pois existem algumas instituições em nosso país que realizam, querendo ou não, a função de preparar e condicionar as camadas sociais para atuarem de acordo com a demanda social vigente. Leia-se, uma verdadeira “seleção social”, preparando, ou despreparando, determinadas camadas sociais para desempenharem funções específicas. Vou me ater a instituição escolar brasileira, especificamente ao ensino público, uma vez que o papel desta tradicional instituição é a de formar cidadãos autônomos e idôneos para vida em sociedade.
      Como professor da rede pública de ensino, sempre me pergunto, que tipo de cidadão estou formando, pessoas autônomas ou analfabetos funcionais? Minha frustração vem à tona quando percebo que a segunda opção é a mais recorrente para a grande maioria dos meus alunos, posto que o corpo discente da escola pública brasileira é negligenciado pelo poder público em todas as suas esferas. Mas pasmem, o investimento geral em educação no Brasil se equiparou a países ricos como França e EUA a partir de 2010 e chegou à segunda colocação entre os países da América Latina, atrás apenas da Argentina, segundo a estudo realizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Mas o estudo relata também que a maioria dos investimentos são destinados a educação superior, em relação ao ensino fundamental e médio. Não é necessário ser gênio para saber quem frequenta o ensino superior no Brasil, tão quanto o ensino público, fundamental e médio. Nem vou entrar no mérito da corrupção e utilização indevida desses recursos, a exemplo do Governo de Minas que desviou oito bilhões de reais da educação mineira nos últimos anos.
      Atualmente o modelo de escola pública padrão em nosso país, claramente forma mão de obra para trabalhar em funções sem complexidade ou que não exigem autonomia cognitiva elevada. Mas o que se esperar de uma instituição composta por muros, grades, cadeados, sirenes, uniformes... Lembrando uma fábrica! Ou de uma instituição que possui um currículo limitado e que limita. O currículo da escola púbica no Brasil possui dois pilares interessantes: formar cidadão e “prepara-los para o mercado de trabalho”. Preparar para o mercado de trabalho é consequência de uma educação de qualidade, onde o ser humano tem valor e é respeitado. No Brasil existem outros grupos que visam preparar para o mercado de trabalho, a exemplo do tráfico de drogas. Tirando os benefícios da CLT, cumprem a mesma função. A escola não deve ter só esse objetivo, deve ser mais complexa e maximizar o potencial humano para que possamos ter, verdadeiramente, uma sociedade composta por pessoas autônomas e não condicionadas e limitadas.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Se navegar é preciso, resistir é genético

João Paulo Araujo

Re.sis.tir - v.t.i. 1. Lutar contra (ataque, atacante), ou responder a (acusação ou acusador); defender-se. 2. Não ser alterado, danificado ou destruído (por algo, ou ação de algo). 3. Não seguir, não ser dominado (por impulso, vontade, ideia, influência, etc.); não aceitar (o que atrai) 4. Não se deixar convencer, não aceitar, não concordar.
Esta é a definição que o dicionário Aurélio traz para a palavra resistir. Comecei por aqui por acreditar que esta palavra define boa parte das ações dos seres vivos, mas também comecei daqui por acreditar que no âmbito da existência humana, já que posso falar somente como um humano, os atos de resistir se inscrevem em um circuito de atitudes altamente elaborado e perpassam os mais diferentes domínios da vida social de nossa espécie.
Não sei vocês, acho que também, mas me pego a todo o tempo resistindo a uma infinidade de imposições e de desejos que desvelam os jogos de poder que constituem as relações em nossas sociedades ocidentais. A gente também precisa resistir à cerveja na segunda, porque, caso contrário, a semana não anda e os projetos pessoais de mudar o mundo se estagnam. Se recuarmos no tempo veremos a resistência indígena ao colonizador, do negro à escravidão, das periferias do mundo ao sistema de exclusão, enfim, o berro dos excluídos está sempre a ecoar por toda parte.
O sistema capitalista, com suas regras e protocolos ascéticos nos impõe uma ética da austeridade que sempre encontrou forte resistência entre nós, e é daí talvez que venha esta ideia estúpida de que índio é um sujeito preguiçoso. O tal do corpo mole é uma arma que vem sendo utilizada há séculos e já deve ter provocado muito AVC em gerente de fábrica e em patrão estressado. É que não podemos correr o risco de supor que as pessoas se conformam às coisas sem qualquer forma de resistência.
Quando nascemos, resistimos aos berros à nossa nova morada. Na medida em que vamos sendo disciplinados pela sociedade envolvente é ainda aos berros que resistimos às imposições de nossos pais. Na escola a luta continua dura. Na sequência vem o trabalho, e aí mais resistência.
Sabemos aquilo que queremos. Não nos tomaram o discernimento ainda, e por isso sabemos quando estamos sendo enganados ou quando as relações são injustas e desumanas, e aí, se não temos força para agir coletivamente e mudar o rumo das coisas, inventamos as micro-resistências que fazem um estrago significativo em tudo que é força contra aquilo que queremos.
Os muros das cidades estão maravilhosamente pintados com as marcas de muitas resistências. O povo da cidade resiste em cada passo, cada ato, e não é porque não fazemos uma grande rebelião que a coisa não tá feia. Hoje mesmo, quando vinha pra casa escrever este texto vi um foco de resistência em operação: em plena Praça 7 um grupo estava sentado fazendo um belo de um churrasco numa churrasqueira improvisada.
Os higiênicos de plantão odeiam a tal da resistência. Os fascistas, nazistas e stalinistas não puderam enxerga-la nem de longe e ainda os generais dos regimes autoritários a puseram entre a cruz e a espada.
Como resolver o problema da insatisfação das massas sedentas de vida plena para que não haja mais riscos ao grande latifúndio, às grandes fortunas do mundo, às grandes mansões? Será que isso tudo é rancor? Digo-lhe, meu caro Eike, que não, que isso é uma coisa que está talvez inscrita na substância ontológica de nosso Ser.    
 Somos o que somos porque desde que nascemos somos obrigados a resistir e quando se é pobre num país miserável de distribuição de vida plena como o nosso, é preciso saber resistir ainda mais. É assim ou o sistema te pega pelo pé.
A grande ironia dessa história é que quanto mais o capital necessita da confiança de seus agentes, pois estes operam máquinas e equipamentos cada vez mais sofisticados e caros, mais a situação fica ecologicamente complicada, economicamente caótica e psicologicamente frenética. Desculpe insistir neste ponto, mas mesmo que não vivamos em contexto histórico marcado por grandes greves e grandes barulhos coletivos, com exceção da maravilha que aconteceu em junho passado durante a copa das confederações, quem não é bobo sabe: se o caldo não está perto de entornar, também não podemos dizer que o mar está para os grandes tubarões.
Tá certo que a grande parcela dos bandidos cretinos deste sofrido país ainda se encontra nas ruas. Tá certo também que o capital especulativo nada de braçada por aqui. Tá certo também quem falar que o salário tá uma merda, que o trabalho tá muito, que o transporte tá ruim e que a cesta básica está pela hora da morte. Tá certo ainda porque, infelizmente, quantos Amarildos estão sumindo neste exato momento sem que a gente consiga fazer nada?
E aí então? Qual é a desse papo que diz que precisamos tomar cuidado para não vitimizar as pessoas porque muitas delas não são vítimas porra nenhuma!!! Qual é, meu camarada que diz isso!?!? Já precisou consultar no SUS? Já estudou em escolha pública? Já foi filho de mãe solteira? Já dependeu de avó e avô pra viver? Já teve vontade ir ao clube e não foi? Já quis alguma coisa da hora e não pôde ter? Então cala a boca quem diz isso, porra!!!!
Essa porcaria de vida austera só serve pra pobre conseguir acordar cedo no outro dia e ir pra fábrica gerar lucro para o patrão!!! Bem assim mesmo. Bem marxista ortodoxo porque pra pobre a coisa tem que ser lida assim, nesses termos. E que me desculpem os bêbados dessa classe média fedida, mas pobreza e miséria não dá pra relativizar.
Eita!!!! Puro desabafo? Puro rancor? Pura dor de parto mal curada? Não mesmo. Isso é resistência cognitiva. As artimanhas ideológicas estão por toda parte e o momento exige que tenhamos calma, mas também exige que não sejamos ingênuos ao ponto de não vermos o que acontece bem embaixo de nossas retinas fatigadas.
       Como já ensinou Foucault, se o poder é micro e está por toda parte, também há indícios de movimentos contracorrente por toda parte. O sujeito é pressionado pelas condições materiais e age contra o sistema que o oprime. O sujeito é pressionado pelas condições simbólicas e resiste ao sistema que o oprime. O estudante é pressionado, a mulher é pressionada, o trabalhador é pressionado, a mãe é pressionada.
          Quanto mais se tenta cercar, mais formas próprias de resistir encontram os sujeitos. A existência cotidiana é uma luta travada dia-a-dia, contra uma imensidão de condições desfavoráveis. Sabemos que podemos continuar porque a força não vem de qualquer novela, minissérie, ou de qualquer porcaria dessas reproduzidas nestas grandes telas de plasma. Essa força, isto sim, vem do que nos funda como seres no mundo.
            Essa lição, quem não é leite com pera sabe. Sabe porque já viu pai e mãe fazendo das tripas coração para não ver filho triste. Sabe por que provavelmente já chorou no colo de alguém com medo de que o mundo o engolisse. Sabe por que é filho da resistência. Filho do sacrifício e do lamento. Sabe muito bem porque se comove com urros que vem dos porões dos navios negreiros. Sabe muito bem porque se compadece com o sangue indígena derramado nas veias abertas da escravizada América Latina.
É preciso ser forte o tempo todo? Tem horas que é preciso gritar!!!




terça-feira, 8 de abril de 2014

Sobre a Antropofagia e o vômito do pós-digestão

Ric

Talvez eu esteja sentindo repugnância da ideia de antropofagia enquanto "vocação nacional".  Sem essa de “Tupi, or not tupi that is the question”.
Hoje ensinado nas escolas de todos os graus como importantíssimo marco da história republicana brasileira, esse movimento que seguiu as vanguardas europeias foi de elite. De fato, o modernismo foi e é instrumento de dominação interna - cultural, simbólica, epistêmica e nacionalista - que teve o efeito apagar diferenças inconciliáveis e invisibilizar lutas sangrentas da história deste país. Essa invisibilização serviu e serve para maquiar a promiscuidade histórica entre os interesses das elites nacionais e os interesses de elites globais. Estas ou aquelas jamais se aproximaram do “povo”, tornado mudo e distante. Longe de ser ao acaso, esse ocultamento conseguiu construir e manter o mito da tal harmonização gradual entre classes, raças, etnias e práticas sociais. Da esquerda à direita, a incorporação dessa ideia de antropofagia não passou de uma folclorização da dominação, do massacre e do extermínio com vistas ao governo e outras formas de controle.
Da repetição dos sonhos fantásticos vindos de playboys novecentistas que buscavam seu estabelecimento (já pré-arranjado) na cultura nacional em vias de fundação aos atuais desastres sociais de um País de economia dependente e indústria cultural submissa a pequenas elites transnacionais, não vejo tantas coisas além de um violento e sangrento apagamento das diferenças em favor do universalismo caucasiano com um “plus” de exotismos pré-fabricados e inseridos em personagens. Da cultura nacional à identidade nacional brasileira o que excede é, principalmente, o cheiro de sangue e os rastros de insensibilidade que escorrem do excesso de espetáculos neste ponto da América Latina.
Precisamos urgentemente vomitar estes caroços que nos travam a fala e a ação em nome da coesão e integração a um Estado-nação violento e a uma população majoritariamente medrosa, que oscila entre as ditas características típicas: hospitalidade, bom humor, calmaria e de criatividade instigante confrontadas com outras, não-oficiais: a naturalidade com que vê a violência de classe, raça e gênero, os abusos sexuais contra crianças, mulheres e doentes mentais, o abandono de crianças e idosos, os assassinatos em série de lideranças indígenas, quilombolas, além de gays, prostitutas e moradores de rua, os espancamentos extralegais das polícias militares nas ruas e favelas, dos agentes penitenciários nas cadeias, enfim, um misto de estratégias de ave de rapina com ética de ratazana para redirecionar a opressão sofrida - a famosa “peleja” - a um próximo. Tudo sem contradizer oficialmente a conformação deste país de proporções continentais e belezas paradisíacas vindas de sonhos e fábulas de europeus.
         Porém, na fuga das piadas racistas e homofóbicas, essas reflexões vão me tornando um chatólogo antissocial... O abismo gerado entre o cotidiano mítico e o cotidiano vivido foi solidificado há séculos e reproduzido pelos membros de todas as classes da dita “sociedade”, década após década. Para tampá-lo, maquiá-lo ou superá-lo já não basta mais a indústria cultural. As discrepâncias são grandes demais. Insônia, pesadelos, compromissos cancelados... Perdendo aulas, furando compromissos, ensopando-me em ansiedade e em delírios conjunturais acordei hoje atrasado, após o horário em que ainda valeria a pena, mais uma vez, fazer tudo correndo e chegar atrasado à aula.
Decidi não ir. Outra vez. Decidi também “tirar um dia de folga”, talvez incorporando o estereótipo do brasileiro, esse tipo que foi caracterizado por ceder fácil ao espontaneísmo em detrimento dos planos e projetos de longo prazo. Sim, decidi tirar o dia de folga para refletir um pouco, experimentando aquela sensação libertadora de transgredir uma regra-compromisso. Decidi também não fazer almoço e nem correr para o bandejão. Fui comer em restaurante! Chegando lá: neocolonialismos por toda parte. Quatro tevês de LCD imensas cercavam o campo de visão e a audição de todos. Dentro das telonas, a rede globo. Fora delas, freezers e preçários da Coca-Cola, sorvetes da Kibon. 
De volta às tevês: as propagandas são direcionadas a um consumidor global do primeiro mundo: carros ultra tecnológicos fazendo alusão à “liberdade”, filmes estadunidenses (vencedores do Oscar) reverenciando o amor romântico. O mundo parece até sem fronteiras! Após as propagandas, o anúncio da nova novela das seis: “Meu Pedacinho de Chão”. O enredo conta com personagens mágicos, de cabelos rosas e olhos azuis (e até dreadlocks postos no galã branco - talvez pra neutralizar o caráter de resistência cultural e religiosa de matriz africana que este estilo tem) e retrata “a infância” (mais essencialismos!) envolta na história familiar de um coronel de interior: um pai que está furioso com a escolha desobediente do filho - quis ser engenheiro agrônomo ao invés de doutor em direito, como orientou o patriarca! Que drama! E ainda recoberto de amor romântico com a professora.
A novela é uma refilmagem da homônima novela das seis de 1971. É a velha tática de repor conteúdos que construam um imaginário nacional comum, a memória social. Da outra vez o país estava no pré-fim do milagre econômico. E agora? Apesar de um contexto sociopolítico que será posto em suspenso e além da trama relacionada com a chegada da escola num interior dominado pelo coronelismo, muita coisa permanece - aliás, em todas as famosas telenovelas “globais”: quase a totalidade de personagens brancos, com aspecto de muito bem cuidados, pele macia e hidratada contrapostos aos negros serviçais, personagens sempre compostos pelo caráter duvidoso e possuidor de um “ethos” cômico, tendente ao ridículo, infalivelmente reduzidos a auxiliares dos mocinhos e mocinhas da trama principal.
Mas não adianta colocar só a rede Globo como a vilã da história. Ela, com seus interesses espúrios, está tranquilamente inserida no campo cultural que conhecemos. Não é diferente das outras produções culturais de renome. Os artistas nacionais consagrados são praticamente todos inofensivos. Jamais passariam disso, e não é à toa que sejam adorados por intelectuais de todo o espectro político. Seja por uma ligação genética entre os membros da elite cultural e a elite que governa, seja pela indispensável subserviência aos cânones pelos aspirantes a intelectuais, esse padrão se mantém. Discordar desse passado construído ou não gostar dos artistas consagrados é quase como ser um herege em plena Idade Média: algo abominável! Precisamos sempre demarcar, sem chances de escapatória o Chico Buarque, o Caetano Veloso e sua irmã, o Gilberto Gil e seus amigos, etc. Mas são inofensivos. Não ofendem quaisquer poderosos. Só ofendem o “povo”: retratado como incrivelmente alegre, pacífico, sofrido mas servo de Deus. Críticas, poéticas demais pra serem tomadas como armas pelos pobres, ainda majoritariamente analfabetos funcionais. No mais e no máximo, uma crise de consciência numa madrugada qualquer, fumando cigarros com amigos esclarecidos, do alto da sacada de uma cobertura de um prédio de classe média alta.
Oswald de Andrade disse, em 1928, de seu lugar de fala: “Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”. Eu digo, em 2014, de onde falo, que nenhum destes descobriu coisa alguma. A invasão não foi ao Brasil, mas a territórios que não estavam fechados sob a soberania de um Estado-nação. O que se tentou legitimar em seguida foi uma nova leva, um “remake”, como o da novela, da invasão e da dominação nos interstícios abandonados até então.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Histórias, ruídos e silêncios da Ditadura

 Tiago - tiagohn@gmail.com

 Algumas coisas eu não escuto. Se muito, ouço algum ruído, e só. Murmuro miúdo, lamento sem razão. Outras sim, ouço quase sempre. Histórias diferentes, e até boas, mas dos mesmos sujeitos, sobre os mesmos sujeitos.
Desde pequeno escuto que foi verdade que naquele 1° de abril de 1964 João Goulart foi retirado do governo pelos Militares. Homens maus! Pensando assim, ali pela 7° ou 8° série eu saia das aulas de História, e matutava, “deve ser por que eles têm armas, por isso podem entrar na sala do presidente e dizer: agora o poder é meu”. Daí proibiram músicas, censuraram filmes, novelas, jornais, peças de teatro, fizeram o Chico se mudar para a Itália, exilaram o Gil, o Caetano, mataram e torturaram comunistas, aquelas pessoas consideradas subversivas. Em minha cabeça eu imaginava que devia ser um perigo sair na rua naquela época. Os militares eram muito maus!
Alguns anos depois reparei que vez ou outra os professores usavam o nome Ditadura civil-militar para falar desse momento da História do Brasil. Mas não explicavam, falavam apenas que muita gente apoiou o golpe que derrubou João Goulart em 64, e que o nome civil se referia a esse apoio da sociedade civil. Hummm... já não era mais um bando de homens fardados que queriam o poder e tinham medo dos comunistas! Desconfiado, pensei que deveria haver mais história naquela história. Mas ainda não entendia o apoio àquele governo tão ruim. Sobretudo se era ruim, por que apoiar? É que eu ainda não sabia: o ruim não é ruim pra todos. E achava aquilo tudo muito estranho. Não entrava na minha cabeça essa história de apoiar um governo que não nos permite escolher ou falar mal do presidente, que não te deixa assistir Roque Santeiro ou ouvir Chico Buarque, um governo que tortura e mata aqueles que lutam por uma sociedade mais justa.
Não, a Ditadura não foi só isso, hoje sei! Mas parece que foi. Ou (para ser mais justo) parece que foi principalmente isso. Como se me dissessem, “teve mais coisa, mas isso é o mais importante, o mais legal de saber”. Como adoro as músicas do Chico, e acho a história dos militantes interessante, emocionante e bonita, então nunca achei ruim...até agora.
50 anos após o Golpe, e quase 30 anos depois da redemocratização, aproveito o momento histórico para observar jornais, televisão, seminários, revistas e outros eventos nos cartazes espalhados pela universidade. Olhando superficialmente, vejo que quando o assunto é a Ditadura essa é a história oficial: censura ao teatro, à música e ao cinema; tortura contra estudantes e outros militantes da época; o papel dos intelectuais e da esquerda; o fechamento de instituições; biografias de nomes importantes que lutaram contra o regime. É disso que mais se fala, são estes os assuntos com maior visibilidade.
Se sopro no texto um leve tom de crítica, quero evitar contudo ser mal compreendido. Acho tudo isso muito importante, e fico muito feliz quando descubro que o país já gastou mais de 2 bilhões com o pagamento de indenizações à algumas vítimas da tortura, do exílio, da aposentadoria compulsória e às famílias de desaparecidos. É preciso gastar ainda muito mais. Não consigo imaginar valor suficiente para indenizar Dulci Pandolfi pela tortura recebida, não há dinheiro que pague a indignidade a qual foi submetida, admiro-a simplesmente por conseguir viver depois do que passou.
            Porém, ando pensando numa outra História. Uma História que (hoje) sei que existe, que dá pra fazer, e que implica noutros heróis, em outras vítimas, em outra consciência, em outras reparações. Uma história do golpe que não aponte apenas homenzinhos maus fardados de verde, mas que os aponte, claro. Espero por uma História do Golpe que fale também de uma sociedade violenta, de uma classe reacionária que se beneficia de um sistema capitalista que não é - e nunca foi - incompatível com o autoritarismo. Uma História que fale de nosso compromisso com o passado, e de nossa responsabilidade com o presente. Espero por uma História do golpe que me permita perguntar: e o Amarildo, e o Robson Melão, o Rafael Braga Viera, e o jovem negro acorrentado no Rio de Janeiro, e meus avós, a favela da Maré, a Serra, e a “cidade” de Ribeirão das Neves, e os quase 30% que vivem na ralé em todo país, todos estes não são também vítimas da Ditadura? Se as condições em que vivem estas pessoas foram geradas ou agravadas durante a ditadura, por que elas não são consideradas vítimas da ditadura? Teria sido a Ditadura apenas um evento político, cultural, e responsável por causar apenas sofrimentos individuais, pontuais? Não foi! E não me venham com essa de vítimas indiretas!
            E se com a mesma frequência com que nos lembra da tortura, das músicas e dos filmes censurados (o que é muito importante, repito!), nossa História também nos lembrasse que o Golpe de 64 possivelmente impediu um processo que aumentaria as oportunidades das camadas mais pobres da sociedade brasileira? E se relembrássemos que o governo de Jango chegou a falar em Reforma Agrária? E se nossa Memória discutisse com mais tenacidade o apoio da Classe Média ao golpe? (Queria adjetivá-la de classe média branca, mas a questão racial também não tem muito espaço na História da Ditadura) Quais projetos de sociedade se enfrentaram naquele momento histórico? Qual projeto venceu, e quem perdeu com a vitória desse projeto que resultou no "Milagre Econômico"? E se nossos documentários mais vistos nos lembrassem que os ricos nunca foram tão ricos e os pobres nunca foram tão pobres em nossa história recente quanto no período do “Milagre Econômico”? Se foi um milagre, este Deus foi bom pra quem? Quem chorou sangue para que esse milagre acontecesse? E quem bebeu do sangue, quem mais engordou com ele? Alguém sabe que os níveis de migração aumentaram escandalosamente nesta época, fazendo o número de favelas em São Paulo mais que triplicar durante a década de 70? Até pesquisar para escrever este texto eu também não sabia. Destas Histórias, destas pessoas, dessa gente do povo povo na verdade, muito pouco eu escuto.