Ric
Talvez eu esteja sentindo repugnância da ideia de antropofagia enquanto "vocação nacional". Sem essa de “Tupi, or not tupi that is the question”.
Talvez eu esteja sentindo repugnância da ideia de antropofagia enquanto "vocação nacional". Sem essa de “Tupi, or not tupi that is the question”.
Hoje ensinado nas
escolas de todos os graus como importantíssimo marco da história republicana
brasileira, esse movimento que seguiu as vanguardas europeias foi de elite. De
fato, o modernismo foi e é instrumento de dominação interna - cultural,
simbólica, epistêmica e nacionalista - que teve o efeito apagar diferenças
inconciliáveis e invisibilizar lutas sangrentas da história deste país. Essa
invisibilização serviu e serve para maquiar a promiscuidade histórica entre os
interesses das elites nacionais e os interesses de elites globais. Estas ou
aquelas jamais se aproximaram do “povo”, tornado mudo e distante. Longe de ser
ao acaso, esse ocultamento conseguiu construir e manter o mito da tal
harmonização gradual entre classes, raças, etnias e práticas sociais. Da
esquerda à direita, a incorporação dessa ideia de antropofagia não passou de
uma folclorização da dominação, do massacre e do extermínio com vistas ao
governo e outras formas de controle.
Da repetição dos sonhos
fantásticos vindos de playboys novecentistas que buscavam seu estabelecimento
(já pré-arranjado) na cultura nacional em vias de fundação aos atuais desastres
sociais de um País de economia dependente e indústria cultural submissa a
pequenas elites transnacionais, não vejo tantas coisas além de um violento e
sangrento apagamento das diferenças em favor do universalismo caucasiano com um
“plus” de exotismos pré-fabricados e inseridos em personagens. Da cultura
nacional à identidade nacional brasileira o que excede é, principalmente, o
cheiro de sangue e os rastros de insensibilidade que escorrem do excesso de
espetáculos neste ponto da América Latina.
Precisamos urgentemente
vomitar estes caroços que nos travam a fala e a ação em nome da coesão e
integração a um Estado-nação violento e a uma população majoritariamente
medrosa, que oscila entre as ditas características típicas: hospitalidade, bom
humor, calmaria e de criatividade instigante confrontadas com outras,
não-oficiais: a naturalidade com que vê a violência de classe, raça e gênero,
os abusos sexuais contra crianças, mulheres e doentes mentais, o abandono de
crianças e idosos, os assassinatos em série de lideranças indígenas,
quilombolas, além de gays, prostitutas e moradores de rua, os espancamentos
extralegais das polícias militares nas ruas e favelas, dos agentes
penitenciários nas cadeias, enfim, um misto de estratégias de ave de rapina com
ética de ratazana para redirecionar a opressão sofrida - a famosa “peleja” - a
um próximo. Tudo sem contradizer oficialmente a conformação deste país de
proporções continentais e belezas paradisíacas vindas de sonhos e fábulas de
europeus.
Porém, na fuga das piadas racistas e homofóbicas,
essas reflexões vão me tornando um chatólogo antissocial... O abismo gerado
entre o cotidiano mítico e o cotidiano vivido foi solidificado há séculos e
reproduzido pelos membros de todas as classes da dita “sociedade”, década após
década. Para tampá-lo, maquiá-lo ou superá-lo já não basta mais a indústria
cultural. As discrepâncias são grandes demais. Insônia, pesadelos, compromissos
cancelados... Perdendo aulas, furando compromissos, ensopando-me em ansiedade e
em delírios conjunturais acordei hoje atrasado, após o horário em que ainda
valeria a pena, mais uma vez, fazer tudo correndo e chegar atrasado à aula.
Decidi não ir. Outra
vez. Decidi também “tirar um dia de folga”, talvez incorporando o estereótipo
do brasileiro, esse tipo que foi caracterizado por ceder fácil ao espontaneísmo
em detrimento dos planos e projetos de longo prazo. Sim, decidi tirar o dia de
folga para refletir um pouco, experimentando aquela sensação libertadora de
transgredir uma regra-compromisso. Decidi também não fazer almoço e nem correr
para o bandejão. Fui comer em restaurante! Chegando lá: neocolonialismos por
toda parte. Quatro tevês de LCD imensas cercavam o campo de visão e a audição
de todos. Dentro das telonas, a rede globo. Fora delas, freezers e preçários da
Coca-Cola, sorvetes da Kibon.
De volta às tevês: as
propagandas são direcionadas a um consumidor global do primeiro mundo: carros
ultra tecnológicos fazendo alusão à “liberdade”, filmes estadunidenses (vencedores
do Oscar) reverenciando o amor romântico. O mundo parece até sem fronteiras!
Após as propagandas, o anúncio da nova novela das seis: “Meu Pedacinho de
Chão”. O enredo conta com personagens mágicos, de cabelos rosas e olhos azuis
(e até dreadlocks postos no galã branco - talvez pra neutralizar o caráter de
resistência cultural e religiosa de matriz africana que este estilo tem) e
retrata “a infância” (mais essencialismos!) envolta na história familiar de um
coronel de interior: um pai que está furioso com a escolha desobediente do
filho - quis ser engenheiro agrônomo ao invés de doutor em direito, como
orientou o patriarca! Que drama! E ainda recoberto de amor romântico com a
professora.
A novela é uma
refilmagem da homônima novela das seis de 1971. É a velha tática de repor
conteúdos que construam um imaginário nacional comum, a memória social. Da
outra vez o país estava no pré-fim do milagre econômico. E agora? Apesar de um
contexto sociopolítico que será posto em suspenso e além da trama relacionada
com a chegada da escola num interior dominado pelo coronelismo, muita coisa
permanece - aliás, em todas as famosas telenovelas “globais”: quase a
totalidade de personagens brancos, com aspecto de muito bem cuidados, pele
macia e hidratada contrapostos aos negros serviçais, personagens sempre
compostos pelo caráter duvidoso e possuidor de um “ethos” cômico, tendente ao
ridículo, infalivelmente reduzidos a auxiliares dos mocinhos e mocinhas da
trama principal.
Mas não adianta colocar
só a rede Globo como a vilã da história. Ela, com seus interesses espúrios,
está tranquilamente inserida no campo cultural que conhecemos. Não é diferente
das outras produções culturais de renome. Os artistas nacionais consagrados são
praticamente todos inofensivos. Jamais passariam disso, e não é à toa que sejam
adorados por intelectuais de todo o espectro político. Seja por uma ligação
genética entre os membros da elite cultural e a elite que governa, seja pela
indispensável subserviência aos cânones pelos aspirantes a intelectuais, esse
padrão se mantém. Discordar desse passado construído ou não gostar dos artistas
consagrados é quase como ser um herege em plena Idade Média: algo abominável!
Precisamos sempre demarcar, sem chances de escapatória o Chico Buarque, o
Caetano Veloso e sua irmã, o Gilberto Gil e seus amigos, etc. Mas são
inofensivos. Não ofendem quaisquer poderosos. Só ofendem o “povo”: retratado
como incrivelmente alegre, pacífico, sofrido mas servo de Deus. Críticas,
poéticas demais pra serem tomadas como armas pelos pobres, ainda
majoritariamente analfabetos funcionais. No mais e no máximo, uma crise de
consciência numa madrugada qualquer, fumando cigarros com amigos esclarecidos,
do alto da sacada de uma cobertura de um prédio de classe média alta.
Oswald de Andrade
disse, em 1928, de seu lugar de fala: “Antes dos portugueses descobrirem o
Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”. Eu digo, em 2014, de onde
falo, que nenhum destes descobriu coisa alguma. A invasão não foi ao Brasil,
mas a territórios que não estavam fechados sob a soberania de um Estado-nação.
O que se tentou legitimar em seguida foi uma nova leva, um “remake”, como o da
novela, da invasão e da dominação nos interstícios abandonados até então.
Ah, os consensos, né Ric! Mais do que burra, toda unanimidade é perigosa, isto sim! Tupi ou não Tupi, classe C ou não?
ResponderExcluirnão e anti-modernxs, contra-históricxs, contra(s)-estado(s) anti-nacional(lista), múltiplxs, contra-o-um: a()gente há índix ou é indigente! texto sensacional, riiic!
ResponderExcluirFiquei imaginando o cara (Ric) voltando do restaurante, sentando em frente ao computador e escrevendo o texto, talvez em 10 ou 20 minutos, ou ainda menos para um "vômito do pós-digestão". Sensacional, pela complexidade e pelos pontos de amarração. É bom ver que embora se incorpore "o estereótipo do brasileiro", a crítica e a razão não escapam à má digestão.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
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ResponderExcluirUm paradoxo interessante, o modernismo enquanto um movimento que quis romper com os cânones académicos das belas artes acaba amalgamado pela própria academia. (...)
ResponderExcluirRic, seu texto me fez pensar o problema da cidadania no Brasil. No transição do XIX para o XX pensar em algum lugar de relevo para o "povo" é impossível não somente para os tupiniquins mas para todo o mundo - exceto o EUA cuja tradição política destoava completamente do que existia no ocidente. Nesse ambiente, o modernismo ao agregar e problematizar elementos "populares" tem o mérito de colocar o "povo" em questão, o que já é uma diferença enorme nos termos das artes academicas afrancesadas. Acho que poderíamos avançar pensando em "arte" não somente do ponto de vista erudito - nesse caso, eruditos que absorvem uma simbologia inspirada num "povo" -, mas de um lugar mais complexo. Ora, o que esse(s) povo(s) produziam? Como e onde produziam? Talvez essa seja uma das pistas para pensar os sujeitos na sua atividade cotidiana de digestão cultural. Aqui assumo a crença em uma metafísica da "massa-não-ignara"; não acredito que as pessoas não são tão idiotas assim.
Será que a "dominação" é tão exitosa assim?
Claudio, a ideia de "povo brasileiro" é exatamente o que estou chamando de uma nova leva do colonialismo. Como assim "o que esse(s) povo(s) produziam? Como e onde produziam?"? Quem somos nós para querermos catalogá-las pra enfeitar com ilustrações num livro a biblioteca de algum burguês?
ResponderExcluirAcho que os grupos estavam produzindo em suas localidades não-totalitárias, não-"nacionais", ou até anti-nacionais, como acabam sendo vistas (especialmente pelos militares) as expressões culturais dos indígenas em sua cosmo-política e em seus mundos não-iluministas. Esses "povos" "brasileiros" estão (ainda!) por toda a parte, sendo exterminados sob a mão pesada do sistema político, do sistema econômico e principalmente dos sistemas penal e prisional. Isso além do sistema educacional, que está baseado em todos os anteriores.
"O problema da cidadania no Brasil" também me levou ao mesmo incômodo anterior. É como se existisse de fato um Brasil! E que ele tivesse um problema intrínseco que outros "povos", especialmente os que hoje são chamados de os construtores do "1º mundo" souberam resolver melhor que nós, e com os quais precisamos aprender (com o primeiro mundo, né, aquele que dá o exemplo, o mais rico, o dominador, o que manda e o que faz obedecer, etc).
Eu não poderia assumir uma tal "metafísica da massa-não-ignata" porque é exatamente contra essa construção "das massas" que estou me opondo, também. Tanto a produção da inglesidade, da francesidade, da brasilidade, das elites e das massas são nossas contemporâneas, diárias, se dão nas relações entre as pessoas (que usam de artifícios mil para lidar situacionalmente com tantas categorias). Não vejo mérito em colocar o "povo" em questão pra subsumir tudo de incomensurável (que foge da beleza estética produzida com público alvo muitíssimo bem seleto e diferenciado) e entronizar pessoas como se fossem bons deuses injustiçados.