- Êpa, essa viagem foi muito rápida! - Tô com muito calor! Essa roupa laranja é um inferno. - C viu? Quase morreu. Foi um grande estouro. - Os portões da escolha foi aberto. Saiu um monte de gente de uma vez. Encavalou. - Frita pastel e coxinha Rute. - Vô leva esse pilantra no pau! Zé subiu no andaime. Maria chegou na casa de Andreia para cuidar do Pedrinho. Raimundo acabou desistindo de faltar ao trabalho. Laura faltou e comprou um atestado na praça 7. Ninguém aqui é vítima. Ninguém aqui sou eu.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Se navegar é preciso, resistir é genético

João Paulo Araujo

Re.sis.tir - v.t.i. 1. Lutar contra (ataque, atacante), ou responder a (acusação ou acusador); defender-se. 2. Não ser alterado, danificado ou destruído (por algo, ou ação de algo). 3. Não seguir, não ser dominado (por impulso, vontade, ideia, influência, etc.); não aceitar (o que atrai) 4. Não se deixar convencer, não aceitar, não concordar.
Esta é a definição que o dicionário Aurélio traz para a palavra resistir. Comecei por aqui por acreditar que esta palavra define boa parte das ações dos seres vivos, mas também comecei daqui por acreditar que no âmbito da existência humana, já que posso falar somente como um humano, os atos de resistir se inscrevem em um circuito de atitudes altamente elaborado e perpassam os mais diferentes domínios da vida social de nossa espécie.
Não sei vocês, acho que também, mas me pego a todo o tempo resistindo a uma infinidade de imposições e de desejos que desvelam os jogos de poder que constituem as relações em nossas sociedades ocidentais. A gente também precisa resistir à cerveja na segunda, porque, caso contrário, a semana não anda e os projetos pessoais de mudar o mundo se estagnam. Se recuarmos no tempo veremos a resistência indígena ao colonizador, do negro à escravidão, das periferias do mundo ao sistema de exclusão, enfim, o berro dos excluídos está sempre a ecoar por toda parte.
O sistema capitalista, com suas regras e protocolos ascéticos nos impõe uma ética da austeridade que sempre encontrou forte resistência entre nós, e é daí talvez que venha esta ideia estúpida de que índio é um sujeito preguiçoso. O tal do corpo mole é uma arma que vem sendo utilizada há séculos e já deve ter provocado muito AVC em gerente de fábrica e em patrão estressado. É que não podemos correr o risco de supor que as pessoas se conformam às coisas sem qualquer forma de resistência.
Quando nascemos, resistimos aos berros à nossa nova morada. Na medida em que vamos sendo disciplinados pela sociedade envolvente é ainda aos berros que resistimos às imposições de nossos pais. Na escola a luta continua dura. Na sequência vem o trabalho, e aí mais resistência.
Sabemos aquilo que queremos. Não nos tomaram o discernimento ainda, e por isso sabemos quando estamos sendo enganados ou quando as relações são injustas e desumanas, e aí, se não temos força para agir coletivamente e mudar o rumo das coisas, inventamos as micro-resistências que fazem um estrago significativo em tudo que é força contra aquilo que queremos.
Os muros das cidades estão maravilhosamente pintados com as marcas de muitas resistências. O povo da cidade resiste em cada passo, cada ato, e não é porque não fazemos uma grande rebelião que a coisa não tá feia. Hoje mesmo, quando vinha pra casa escrever este texto vi um foco de resistência em operação: em plena Praça 7 um grupo estava sentado fazendo um belo de um churrasco numa churrasqueira improvisada.
Os higiênicos de plantão odeiam a tal da resistência. Os fascistas, nazistas e stalinistas não puderam enxerga-la nem de longe e ainda os generais dos regimes autoritários a puseram entre a cruz e a espada.
Como resolver o problema da insatisfação das massas sedentas de vida plena para que não haja mais riscos ao grande latifúndio, às grandes fortunas do mundo, às grandes mansões? Será que isso tudo é rancor? Digo-lhe, meu caro Eike, que não, que isso é uma coisa que está talvez inscrita na substância ontológica de nosso Ser.    
 Somos o que somos porque desde que nascemos somos obrigados a resistir e quando se é pobre num país miserável de distribuição de vida plena como o nosso, é preciso saber resistir ainda mais. É assim ou o sistema te pega pelo pé.
A grande ironia dessa história é que quanto mais o capital necessita da confiança de seus agentes, pois estes operam máquinas e equipamentos cada vez mais sofisticados e caros, mais a situação fica ecologicamente complicada, economicamente caótica e psicologicamente frenética. Desculpe insistir neste ponto, mas mesmo que não vivamos em contexto histórico marcado por grandes greves e grandes barulhos coletivos, com exceção da maravilha que aconteceu em junho passado durante a copa das confederações, quem não é bobo sabe: se o caldo não está perto de entornar, também não podemos dizer que o mar está para os grandes tubarões.
Tá certo que a grande parcela dos bandidos cretinos deste sofrido país ainda se encontra nas ruas. Tá certo também que o capital especulativo nada de braçada por aqui. Tá certo também quem falar que o salário tá uma merda, que o trabalho tá muito, que o transporte tá ruim e que a cesta básica está pela hora da morte. Tá certo ainda porque, infelizmente, quantos Amarildos estão sumindo neste exato momento sem que a gente consiga fazer nada?
E aí então? Qual é a desse papo que diz que precisamos tomar cuidado para não vitimizar as pessoas porque muitas delas não são vítimas porra nenhuma!!! Qual é, meu camarada que diz isso!?!? Já precisou consultar no SUS? Já estudou em escolha pública? Já foi filho de mãe solteira? Já dependeu de avó e avô pra viver? Já teve vontade ir ao clube e não foi? Já quis alguma coisa da hora e não pôde ter? Então cala a boca quem diz isso, porra!!!!
Essa porcaria de vida austera só serve pra pobre conseguir acordar cedo no outro dia e ir pra fábrica gerar lucro para o patrão!!! Bem assim mesmo. Bem marxista ortodoxo porque pra pobre a coisa tem que ser lida assim, nesses termos. E que me desculpem os bêbados dessa classe média fedida, mas pobreza e miséria não dá pra relativizar.
Eita!!!! Puro desabafo? Puro rancor? Pura dor de parto mal curada? Não mesmo. Isso é resistência cognitiva. As artimanhas ideológicas estão por toda parte e o momento exige que tenhamos calma, mas também exige que não sejamos ingênuos ao ponto de não vermos o que acontece bem embaixo de nossas retinas fatigadas.
       Como já ensinou Foucault, se o poder é micro e está por toda parte, também há indícios de movimentos contracorrente por toda parte. O sujeito é pressionado pelas condições materiais e age contra o sistema que o oprime. O sujeito é pressionado pelas condições simbólicas e resiste ao sistema que o oprime. O estudante é pressionado, a mulher é pressionada, o trabalhador é pressionado, a mãe é pressionada.
          Quanto mais se tenta cercar, mais formas próprias de resistir encontram os sujeitos. A existência cotidiana é uma luta travada dia-a-dia, contra uma imensidão de condições desfavoráveis. Sabemos que podemos continuar porque a força não vem de qualquer novela, minissérie, ou de qualquer porcaria dessas reproduzidas nestas grandes telas de plasma. Essa força, isto sim, vem do que nos funda como seres no mundo.
            Essa lição, quem não é leite com pera sabe. Sabe porque já viu pai e mãe fazendo das tripas coração para não ver filho triste. Sabe por que provavelmente já chorou no colo de alguém com medo de que o mundo o engolisse. Sabe por que é filho da resistência. Filho do sacrifício e do lamento. Sabe muito bem porque se comove com urros que vem dos porões dos navios negreiros. Sabe muito bem porque se compadece com o sangue indígena derramado nas veias abertas da escravizada América Latina.
É preciso ser forte o tempo todo? Tem horas que é preciso gritar!!!




5 comentários:

  1. Massa!!!
    Parabéns João Paulo!
    Viva longa ao terceiro!
    Força pra nós!!!

    ResponderExcluir
  2. "existir é diferir", diferir é rexistir! parabéns, joão! texto foda!

    ResponderExcluir
  3. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  4. Já precisou consultar no SUS? SEMPRE!!!
    Já estudou em escolha pública? SEMPRE!!!
    Já foi filho de mãe solteira? HAHA! SEMPRE!!!
    Já dependeu de avó e avô pra viver? SIM!!!
    Já teve vontade ir ao clube e não foi? SEMANA PASSADA!!!
    Já quis alguma coisa da hora e não pôde ter? A infância inteira...

    Caraca, João, me identifiquei com isso. Porém, um problema: e quando não dá mais pra acreditar nos partidos de esquerda?

    ResponderExcluir