Tiago - tiagohn@gmail.com
Algumas coisas eu não escuto.
Se muito, ouço algum ruído, e só. Murmuro miúdo, lamento sem razão. Outras sim,
ouço quase sempre. Histórias diferentes, e até boas, mas dos mesmos sujeitos,
sobre os mesmos sujeitos.
Desde pequeno escuto que foi verdade
que naquele 1° de abril de 1964 João Goulart foi retirado do governo pelos
Militares. Homens maus! Pensando assim, ali pela 7° ou 8° série eu saia das
aulas de História, e matutava, “deve ser por que eles têm armas, por isso podem
entrar na sala do presidente e dizer: agora o poder é meu”. Daí
proibiram músicas, censuraram filmes, novelas, jornais, peças de teatro,
fizeram o Chico se mudar para a Itália, exilaram o Gil, o Caetano, mataram e
torturaram comunistas, aquelas pessoas consideradas subversivas. Em minha
cabeça eu imaginava que devia ser um perigo sair na rua naquela época. Os
militares eram muito maus!
Alguns anos depois reparei que vez ou
outra os professores usavam o nome Ditadura civil-militar para
falar desse momento da História do Brasil. Mas não explicavam, falavam apenas
que muita gente apoiou o golpe que derrubou João Goulart em 64, e que o
nome civil se referia a esse apoio da sociedade civil.
Hummm... já não era mais um bando de homens fardados que queriam o poder e
tinham medo dos comunistas! Desconfiado, pensei que deveria haver mais história
naquela história. Mas ainda não entendia o apoio àquele governo tão ruim.
Sobretudo se era ruim, por que apoiar? É que eu ainda não sabia: o ruim não é ruim
pra todos. E achava aquilo tudo muito estranho. Não entrava na minha cabeça essa história de apoiar um governo que não nos
permite escolher ou falar mal do presidente, que não te deixa assistir Roque Santeiro ou ouvir Chico Buarque, um governo
que tortura e mata aqueles que lutam por uma sociedade mais justa.
Não, a Ditadura não foi só isso, hoje
sei! Mas parece que foi. Ou (para ser mais justo) parece que foi principalmente isso.
Como se me dissessem, “teve mais coisa, mas isso é o mais importante, o
mais legal de saber”. Como adoro as músicas do Chico, e acho a história dos
militantes interessante, emocionante e bonita, então nunca achei ruim...até
agora.
50 anos após o Golpe, e quase 30 anos
depois da redemocratização, aproveito o momento histórico para observar
jornais, televisão, seminários, revistas e outros eventos nos cartazes
espalhados pela universidade. Olhando superficialmente, vejo que quando o
assunto é a Ditadura essa é a história oficial: censura ao teatro, à música e
ao cinema; tortura contra estudantes e outros militantes da época; o papel dos
intelectuais e da esquerda; o fechamento de instituições; biografias de nomes
importantes que lutaram contra o regime. É disso que mais se fala, são estes os
assuntos com maior visibilidade.
Se sopro no texto um leve tom de
crítica, quero evitar contudo ser mal compreendido. Acho tudo isso muito
importante, e fico muito feliz quando descubro que o país já gastou mais de 2
bilhões com o pagamento de indenizações à algumas vítimas da tortura, do
exílio, da aposentadoria compulsória e às famílias de desaparecidos. É preciso
gastar ainda muito mais. Não consigo imaginar valor suficiente para indenizar
Dulci Pandolfi pela tortura recebida, não há dinheiro que pague a indignidade a
qual foi submetida, admiro-a simplesmente por conseguir viver depois do que
passou.
Porém, ando pensando numa outra História. Uma História que (hoje) sei que
existe, que dá pra fazer, e que
implica noutros heróis, em outras vítimas, em outra consciência, em outras
reparações. Uma história do golpe que não aponte apenas homenzinhos maus fardados
de verde, mas que os aponte, claro. Espero por uma História do Golpe que fale
também de uma sociedade violenta, de uma classe reacionária que se beneficia de
um sistema capitalista que não é - e nunca foi - incompatível com o
autoritarismo. Uma História que fale de nosso compromisso com o passado, e de
nossa responsabilidade com o presente. Espero por uma História do golpe que me
permita perguntar: e o Amarildo, e o Robson Melão, o Rafael Braga Viera, e o
jovem negro acorrentado no Rio de Janeiro, e meus avós, a favela da Maré, a
Serra, e a “cidade” de Ribeirão das Neves, e os quase 30% que vivem na ralé em
todo país, todos estes não são também vítimas da Ditadura? Se as condições em
que vivem estas pessoas foram geradas ou agravadas durante a ditadura, por que
elas não são consideradas vítimas da ditadura? Teria sido a Ditadura apenas um
evento político, cultural, e responsável por causar apenas sofrimentos
individuais, pontuais? Não foi! E não me venham com essa de vítimas indiretas!
E se
com a mesma frequência com que nos lembra da tortura, das músicas e dos filmes
censurados (o que é muito importante, repito!), nossa História também nos
lembrasse que o Golpe de 64 possivelmente impediu um processo que aumentaria as
oportunidades das camadas mais pobres da sociedade brasileira? E se
relembrássemos que o governo de Jango chegou a falar em Reforma Agrária? E se
nossa Memória discutisse com mais tenacidade o apoio da Classe Média ao golpe?
(Queria adjetivá-la de classe média branca, mas a questão
racial também não tem muito espaço na História da Ditadura) Quais projetos de
sociedade se enfrentaram naquele momento histórico? Qual projeto venceu, e
quem perdeu com a vitória desse projeto que resultou no "Milagre
Econômico"? E se nossos documentários mais vistos nos lembrassem que os
ricos nunca foram tão ricos e os pobres nunca foram tão pobres em nossa história
recente quanto no período do “Milagre Econômico”? Se foi um milagre, este Deus
foi bom pra quem? Quem chorou sangue para que esse milagre acontecesse? E quem bebeu do sangue, quem mais engordou com ele? Alguém
sabe que os níveis de migração aumentaram escandalosamente nesta época, fazendo
o número de favelas em São Paulo mais que triplicar durante a década de 70? Até
pesquisar para escrever este texto eu também não sabia. Destas Histórias, destas
pessoas, dessa gente do povo povo na
verdade, muito pouco eu escuto.
parabéns, galera! blog e texto sensacionais!
ResponderExcluirMuito foda meso, foi uma surpresa muita agradável, afável e motivadora
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirótima reflexão. diria ainda que falta contar a história do absurdo genocídio indígena e a violência contra povos tradicionais e comunidades quilombolas que estavam "no caminho" dessa marcha inexorável ao progresso que foi posta em prática nos anos 60. não que genocídio indígena tenha sido uma exclusividade da ditadura, óbvio, mas há uma invisibilidade dessa questão até mesmo nos dados. Não me lembro agora a fonte, mas aparentemente só a construção das rodovias na região amazônica e das grandes hidrelétricas como Itaipu deslocaram e assassinaram índios suficientes pra mais que triplicar a conta oficial de mortos e desaparecidos da ditadura. Fenômeno que se repete hoje, no governo de uma ex-guerrilheira, quando se deslocam e matam pessoas para novamente tocar projetos megalomaníacos e desnecessários de hidrelétricas e construir estádios pra Fifa fazer a sua festa.
ResponderExcluirConcordo Felipe! Queria ter falado dos povos tradicionais, mas faltou espaço. Veja só, até o pretenso antropólogo, na hora de escolher, cortou nos indígenas! :/ ...mas fico feliz de conseguir passar a ideia. É exatamente sobre (e contra) essa marcha do progresso que se quer inexorável que queria falar. Sabemos, a Ditadura criou condições para eu impulso! E disso ninguém fala, por que precisamente nesse ponto o atual governo é idêntico!
ExcluirÓtimo texto, Tiago! É preciso compreender antes que denunciar. Antes de lançarmos críticas apriorísticas a fenômenos como o regime/ditadura civil-militar (militar-civil?), devemos nos resguardar dos nossos pré-conceitos, evitando maniqueísmos, com o fim de visualizar as complexidades, ambiguidades e ambivalências. Também não estou aqui querendo diminuir o que significou -negativamente - para o Brasil esse fenômeno, mas estou mais preocupado em entender o 'outro', nos seus próprios termos. Seria ele talvez uma "terceira" pessoa?
ResponderExcluirExcelente e muito pertinente!
ResponderExcluirNuhh…não poderia ter começado melhor. Parabéns Tiago! O texto ficou excelente, causa uma reflexão mais que necessária, é urgente a discussão dos afetados DIRETOS por esse período histórico que insiste em mascarar as vítimas (apesar da problemática que gera esse termo, não vejo nesse momento outro melhor que o substitua), as quais
ResponderExcluirainda sofrem as consequências do autoritarismo e interesse de grupos específicos nos dias de hoje. Sejam elas os pretos, pobres, favelados, ou quilombolas, indígenas, camponeses e comunidades tradicionais como um todo, a marcha do progresso iniciada explicitamente com Juscelino não cessou até hoje, as zonas de sacrifícios continuam dadas...