- Êpa, essa viagem foi muito rápida! - Tô com muito calor! Essa roupa laranja é um inferno. - C viu? Quase morreu. Foi um grande estouro. - Os portões da escolha foi aberto. Saiu um monte de gente de uma vez. Encavalou. - Frita pastel e coxinha Rute. - Vô leva esse pilantra no pau! Zé subiu no andaime. Maria chegou na casa de Andreia para cuidar do Pedrinho. Raimundo acabou desistindo de faltar ao trabalho. Laura faltou e comprou um atestado na praça 7. Ninguém aqui é vítima. Ninguém aqui sou eu.

terça-feira, 14 de abril de 2015

Sobre outros Eduardos ou Pelo poder da gente do lugar

Tiago

Hoje eu gostaria de usar esse espaço para falar do Eduardo, o menino de 10 anos que foi assassinado no Rio de Janeiro há alguns dias. Digo gostaria por que na verdade eu acho que não devo. Por isso vou tentar não falar exatamente dele, ou por ele. Ultimamente tenho tido muita dificuldade para falar dos outros, sobre os outros e, principalmente, sobre estes outros, sobre estes Eduardos. Quem sou eu para falar do Eduardo, da dor que sente sua mãe, sua família? Da dor que sente seus amigos que, aliás, continuam vivendo no mesmo lugar, só que agora sem o Eduardo, que partiu junto com toda família para outro lugar.
Quando penso nisso, penso que talvez aquele lugar já não seja mais o mesmo, e que por isso já não seja mais tão lugar assim, principalmente para aqueles que conheceram o Eduardo. Penso que talvez aquele lugar tenha mudado, e que agora seja outro. Mas disso, só pode dizer quem vive por lá. Só quem continua passando por aquele beco sabe e sente como aquele lugar foi e como ele é agora, depois que o Eduardo partiu. Ele deve fazer uma falta que eu daqui só posso imaginar, afinal, eu não conheci o Eduardo, e nem moro no lugar.
Nas últimas conversas com meus bons amigos, temos falado que nesse momento talvez o melhor não seja falar do Eduardo, desse Eduardo. Menos ainda falar por ele, pela mãe, pelos amigos ou pela gente dele. Temos pensado que talvez (nesse momento) não seja esse o “nosso” papel. (“Nós”: essa gente que fala, escreve e tenta explicar as coisas no jornal, nos livros, na universidade, ou no Terceiro, por exemplo). Nesse momento, entendo que mais importante é falar de quem matou o Eduardo. Não que devamos deixar de falar, de denunciar, de sentir sua morte. Não é isso que eu estou dizendo. Mas acho que não devemos falar apenas dele.
O que quero é propor uma reflexão sobre a violência que é falar por e sobre alguém. E assim dizer que, se temos que falar sobre alguém, que falemos menos dos Eduardos de Jesus, e mais dos Eduardos Bittencourts, Albuquerques, Neves, Paes, Cunhas, Vieiras, etc. Daqueles que provocam mortes sem sujar suas mãos. Daqueles Eduardos cujos pais e avôs dão nomes às nossas principais ruas, escolas, avenidas e grandes empresas. Dos que moram em outros bairros, que andam em outros carros, que trabalham em escritórios, tribunais, universidades, hospitais, dos que falam na televisão. Dos Eduardos que falam sobre “os outros” como se tudo soubessem sobre “eles”, como se tudo soubessem sobre o lugar dos outros mais que eles próprios. Proponho falarmos mais dos Eduardos que falam do Brasil todo como se ele todo fosse seu lugar. Proponho falar não dos que morrem em becos, mas dos que morrem no hospital Albert Einstein, dos que são enterrados na terra pátria em que nasceram e cresceram, sepultados entre homenagens, granitos e flores.
Lembremos que os pais do Eduardo assassinado no morro do Alemão não quiseram enterrá-lo naquela cidade. Levaram o menino para a cidade de Corrente, no Piauí. Escolheram enterrar o filho num lugar de onde se sentem parte, talvez onde se sintam queridos, acolhidos, importantes. Talvez o lugar de onde partiram, um dia, para tentar uma vida melhor na cidade maravilhosa. Porém, a julgar pelas palavras de Teresinha, mãe de Eduardo, que trabalhava de doméstica no Rio de Janeiro, acho que eles notaram que a maravilha era uma cidade, e que na cidade não cabe “todo mundo”, não pode ser um lugar para todo mundo.

 “Eu quero tirar o meu filho daqui, quero enterrar no Piauí. Vou levar o corpo do meu filho para o Piauí. Vou voltar [ao Rio] porque eu quero justiça e depois eu vou embora para lá. Não quero ficar nesse lugar maldito eu vou sair daqui”, afirmou. (G1- http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/04/mae-de-menino-de-10-anos-morto-no-alemao-diz-que-vai-deixar-o-rio.html)

Não deve ter sido fácil aumentar ainda mais o número de burocracias que a morte de um parente nos impõe, adiar as cerimônias de despedida do filho, tudo isso para que o menino ficasse num lugar que realmente o merecesse, um lugar que fosse digno de sua lembrança. Penso que mesmo do meio de todo esse sofrimento eles nos ensinaram muita coisa, coisas que a gente até já sabe, mas que não se lembra sempre.
Ao nos dizerem que o Rio de Janeiro não serve para eles (essa cidade que se diz a grande representante do país, que quer ser todos os lugares, como se tudo que se vivesse lá fosse o mesmo que se sente e se vive em todos os outros lugares do país), Terezinha e José Maria nos ensinam que não existe Brasil, pátria, nação, existe lugar. E esse é de cada um, de cada gente. Parece que, para eles, aquela cidade não se tornou um lugar, eles não encontraram um lugar naquela cidade.
Não sei se me fiz entender bem, mas o quero dizer é que precisamos falar mais dos Eduardos que falam sobre a Cidade, nos perguntando e perguntando para ele por que ele se acha no direito de falar pela Cidade, como se toda ela fosse seu lugar? Quando a gente sabe muito bem que lugar é uma coisa da gente, é uma coisa de quem conhece, de quem vive lá. E sendo a cidade tão grande, do tamanhão que dizem ser, como é que pode alguém poder falar por toda a cidade? Como pode alguém falar sobre esse tanto de lugar em que nunca viveu? Sobre um tanto de Eduardo que nunca conheceu?
Temos que questionar, por exemplo, que Direito tem o Eduardo “Especialista em Segurança” de definir qual a melhor “política de segurança” para um lugar que ele nunca viveu. Você deixaria alguém que não mora na sua casa, sem te consultar, decidir qual a melhor forma de protegê-la, de proteger a sua família? Penso que isso não é possível. Se ele não sabe do que a sua família sente medo, se não sabe o que você considera uma ameaça, e do que sua família quer se proteger, como ele pode decidir do que você e como você deve proteger? Se esse “especialista” acha que pode ajudar, ele deve começar levando a sério o que as pessoas da sua casa têm a dizer, e tem de oferecer sua ajuda a partir das escolhas que sua família fizer, e não decidir o que sua família deve escolher.
Agora transfira essa reflexão para sua rua, para o seu bairro, para o morro do Alemão, ou para o Aglomerado da Serra. Como uma “política de segurança”, “de moradia”, de “pavimentação”, de “revitalização” pode ser implantada naquele lugar sem que os moradores do lugar sejam ouvidos – e levados a sério? Do que as pessoas do lugar querem se proteger? O que as pessoas do lugar consideram perigoso? O que consideram uma ameaça à convivência naquele lugar? De que forma eles querem se proteger? De que jeito elas querem morar naquele lugar? O que elas querem arrumar, consertar, construir naquele lugar? Com que materiais, com quais pessoas, de que forma as pessoas do lugar querem construir aquele lugar? Tenho a impressão que a família e as pessoas que vivem no lugar onde Eduardo viveu e morreu não tem sido muito ouvidas sobre o que querem para o seu lugar.

2 comentários:

  1. E pensar que enquanto o Eduardo era assassinado pelo estado a mãe dele estava em outra casa, tratando de deixar um ambiente limpo, confortável, receptivo e seguro para outras pessoas, talvez até um outro Eduardo.

    E isso não por ela ser desonesta, por não ser trabalhadora ou por ser “má”. Apesar de características morais serem usadas com muita frequência pra convencer as pessoas de que a desigualdade é legítima, isso aconteceu porque ela é pobre, em uma família pobre, com um filho pobre. Essa categoria que o estado e os organismos internacionais criaram, “pobre”, é uma bizarrice. O bordão governista atual é que o país vai se tornar um grande país de classe média. Mas é mentira. Enquanto for aceitável que uma empregada doméstica tenha como rotina “natural” ter a própria vida e a vida das pessoas importantes pra ela expostas ao extermínio, ao genocídio e à escassez de coisas básicas, ostentadas “ali na praia” e arredores, não me convencem de nada. Só estou convencido que a classe média é uma monstruosidade que se espelha num demônio ainda maior, emparelhado com o estado e com “o mundo” de forma arrogante e prepotente.

    Acho que outras alianças precisam ser feitas, como diz o Gustavo. E muitas desconexões são extremamente importantes agora...

    ResponderExcluir
  2. Texto incrível Tiago… fundamental para encaminhar essa discussão por vias normalmente não delimitadas. É importante colocar em pauta a questão de falar pelo "outro", principalmente quando quem fala é umx antropólogx…

    ResponderExcluir