Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco
ou nenhum amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é
discutida em público. Essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras
raramente falam abertamente sobre isso. Bell Hooks
Um pouco antes de passar pelo processo de
transição capilar, [contei sobre
isso aqui: http://blogterceiroopiniao.blogspot.com.br/2014/06/se-o-cabelo-e-meu-deixa-eu-cachear.html] passei por um período no qual eu buscava ler
estudos e blogs que tratassem de assuntos sobre a questão da consciência
identitária da mulher negra e sua relação com o cabelo. Acontece que em uma
dessas buscas acabei me deparando com uma temática que me intrigou muito e da
qual eu nunca havia me questionado: “o mercado
matrimonial da mulher negra e a decorrente solidão afetivo-sexual”[2].
Li diversos relatos de mulheres negras, de
diferentes classes e capital cultural, e todas traziam uma narrativa muito
parecida no que concerne aos relacionamentos afetivos. A narrativa dessas
mulheres me fez perceber que muitas das situações vividas por elas eram
parecidas com as minhas. Foi um choque me deparar com isso. Eu não sabia (e
ainda não sei) como lidar com aquilo (isso). Por um lado, eu estranhava o porquê
de nunca ter me questionado sobre isso, por outro, passei a reviver em memória
toda minha vida afetiva com outro olhar, um olhar menos iludido e menos
naturalizado. E fazer isso foi e ainda é muito doloroso pra mim, porque de
repente passei a perceber que diversas situações vividas e não-vividas talvez
estivessem relacionadas com a cor da minha pele.
Tenho 27 anos e nunca namorei. Nunca havia
passado pela minha cabeça que ser uma mulher negra pudesse ser um fator
relevante para justificar essa minha condição, mas hoje penso que o fato de eu
ser uma ‘garota estranha’ (essa era uma das minhas justificativas), talvez não
seja o único fator determinante na dificuldade de manter um relacionamento
afetivo.
Minha vida amorosa é marcada por uma infinidade
de amores platônicos, sempre marcados por expectativas dentro de uma lógica
onde nada é realmente impossível enquanto nada é possível. Meu primeiro amor do
jardim de infância já era um prenúncio do que seria minha [não] vida afetiva. No
primeiro dia de aula eu me apaixonei por um menino da sala, morria de amores
pelo tal Rodolfo, mas ele gostava e vivia atrás de outras duas meninas da
turma, gêmeas, branquinhas, bonitinhas do cabelo perfeito. A adolescência foi
terrível, durante todo o meu período escolar eu nunca fiquei com alguém da
minha escola. A verdade é que nunca me senti bonita e muito menos desejada por
nenhum dos meninos da escola. Alisava meu cabelo numa tentativa frustrada de me
encaixar em um padrão de beleza feminina, mas mesmo assim eu não era a garota
“escolhida”. Eu era a amiga, o “brother”, servia de ponte entre minhas amigas e
seus pretendentes, era o cupido que agilizava os encontros, e só. Eu, sendo magra,
tímida e tida por alguns como ‘cdf’, não me enquadrava nem no perverso
esteriótipo da negra sexual. Eu era quase que invisível.[3]
A minha vida acadêmica não foi muito
diferente disso, cursei Direito em uma Faculdade particular, no período da
tarde. Se eu não era objeto de desejo de garotos adolescentes em uma escola
pública, imagina num ambiente como esse? E assim foi sendo construída [?] minha
vida afetiva [?] durante todos esses anos. A solidão sempre foi algo presente.
Há pouco mais de um ano passei a usar o meu
cabelo natural, está sendo uma mudança não apenas externa, tenho repensado
muito sobre minha auto-estima e identidade. Estou num processo árduo de tomada
de consciência de mim mesma e da maneira como me relaciono com as pessoas. De
modo geral, posso dizer que a resposta tem sido positiva em relação a minha
imagem, me sinto mais bonita e recebo mais elogios. Já não me sinto tão
invisível ao desejo masculino. Mas ainda assim continuo sem vislumbrar qualquer
perspectiva de um relacionamento duradouro. Quando conheço alguém é impossível
não pensar nas implicações e dificuldades de um relacionamento inter-racial,
impossível não cogitar a ideia de que provavelmente não serei preferência na
escolha de um cara que queira um ‘relacionamento sério’.
É evidente que essa
dificuldade afetiva não se restringe apenas ao âmbito racial, ela se mistura a
questão de classe, ambas questões estão intimamente imbricadas[4]. Nos ambientes que costumo
frequentar não encontro muitas pessoas negras, principalmente mulheres negras.[5] Sei do meu lugar ‘privilegiado’,
sou advogada, estou terminando minha segunda graduação e apesar de não ter um
sentimento de pertencimento de classe com a classe média, estou ciente de que
compartilho com ela, em certa medida, um capital cultural. Compartilho
inclusive um ideal de homem para me relacionar, confesso que nunca tive o homem
negro como objeto de desejo, e o inverso também é verdadeiro, geralmente homens
negros tem preferência por mulheres brancas[6].
Você pode estar se questionando: “ah, mas
isso é questão de gosto, de preferências, não tem nada a ver com a cor da pele.”
Bourdieu, um sociólogo francês, diz em seus estudos que a ideologia mais bem
sucedida é aquela que não precisa de palavras, ela se dissemina de maneira
opaca e invisível. Desde a infância, através do aprendizado, cada um de nós é
formado de maneiras diversas e imperceptíveis. Somos ensinados, desde a
infância mais remota, a formar julgamentos sobre o mundo que nos cerca, nossas
noções de belo, feio, perigoso, do que devemos gostar e do que não devemos
gostar. Além da escola, a televisão, os amigos, as pessoas com quem nos
relacionamos, enfim, tudo o que nos cerca contribui para nossa formação
pessoal, para a formação do que chamamos de nosso “gosto”.
Forma-se nosso habitus, ou seja, uma certa forma de relacionar com o mundo, com as
pessoas, e com as coisas. Um jeito de mexer, de agir, de classificar, de
avaliar o mundo, de fazer escolhas quase que sem pensar, naturalmente. O gosto
se manifesta nesse sentido, como um senso de distinção. É assim na construção
de uma estética da mulher ideal para se ter um relacionamento[7]: mulher branca para o
casamento, a mulata para o sexo e a negra para o trabalho.
Conversando com uma amiga sobre
nossa dificuldade de relacionamento fixos, em certo momento ela me disse “eu sei que por mais que eu estude, crie
minha independência, dificilmente vou me casar, tenho consciência de que nunca
serei suficientemente boa como uma mulher branca nessas mesmas condições.” Foi
com muita tristeza que ouvi essas palavras, porque no final das contas parece
que é isso mesmo, passei anos da minha vida tentando entender o que havia de
errado comigo, questionando como que outras garotas nem tão bonitas e nem tão
interessantes tinham tanta facilidade em se relacionar.
O amor tem cor? Sim,
o amor tem cor, uma vez que, sistematicamente as mulheres negras são preteridas
por homens negros e brancos na escolha de parceiras para um relacionamento
afetivo. É preciso dar visibilidade a essas questões, somente assim podemos iniciar
um processo de modificação de práticas tão naturalizadas em nosso cotidiano.
Empoderamento afetivo, auto-estima e representatividade
são importantes instrumentos para lidar com a solidão afetiva, seriam talvez
uma forma de transformar a solidão e a dor em liberdade... [ou quem sabe em
amor?]
Caroline Louise
[2] Dentre os estudos que trata a questão
afetivo-sexual da mulher negra destaco a dissertação de mestrado de Claudete
Alves “A solidão da mulher negra- sua
subjetividade e seu preterimento pelo homem negro na cidade de São Paulo”;
e a tese de Ana Pacheco “Branca para casar, mulata para f..., negra para trabalhar:
escolhas afetivas e significados de solidão entre mulheres negras em Salvador,
Bahia”
[3] “Nunca namorei no colégio, e pra mim
isso era normal”: https://www.youtube.com/watch?v=VQVbXk39iKE
[4] É comum nos relatos das mulheres negras o fato
de que muitas, para conseguir um relacionamento fixo acabam se relacionando com
parceiros de grau de escolaridade menor que o delas.
[5] Os negros que encontro nos lugares em
que freqüento, geralmente são empregados. Não é difícil me encontrar em
situações acadêmicas, restaurantes e até festas em que sou a única negra. É
assustador.
[6] Alguns estudos, e até mesmo algumas
mulheres apontam que o homem negro de melhor condição social prefere a mulher
branca. O trabalho da Claudete Alves, mostra que é incorreta essa afirmação,
uma vez que, sua pesquisa demonstrou que o homem negro tem preferência pela
mulher branca independente de qual seja sua classe social.
[7] Existe também o machismo que
estabelece as “mulheres pra casar”, sendo a mulher branca também vitima dessa
prática. Porém, no caso da mulher negra, seu corpo é apenas um objeto, não há divisões
desse tipo, mulher negra não é mulher para casar.
Que texto lindo Carol, fiquei muito pensativa com suas declarações… Essas discussões já permearam debates que defendi exatamente o que vc está dizendo, as preferências em consolidar relacionamentos passa sim por nossas construções sociais do desejo e de quem está apto a ser desejado. Muito interessante os dados que vc apresenta, vale muito a pena continuar a pautar essa discussão.
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