- Êpa, essa viagem foi muito rápida! - Tô com muito calor! Essa roupa laranja é um inferno. - C viu? Quase morreu. Foi um grande estouro. - Os portões da escolha foi aberto. Saiu um monte de gente de uma vez. Encavalou. - Frita pastel e coxinha Rute. - Vô leva esse pilantra no pau! Zé subiu no andaime. Maria chegou na casa de Andreia para cuidar do Pedrinho. Raimundo acabou desistindo de faltar ao trabalho. Laura faltou e comprou um atestado na praça 7. Ninguém aqui é vítima. Ninguém aqui sou eu.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Bar do Centro

            Tudo começa num bar. O mesmo bar de sempre. Aquele que ainda usa toalhas de plástico sobre as mesas quadradas e amarelas, cujas cadeiras são postas sobre outras, quebradas, cujo dono conhece todos os clientes e esconde, por trás dos bigodes de morsa, a frustração de amores não vividos. Tudo começa nesse bar.
            A memória de uma juventude desperdiçada, as escolhas mal feitas, os risos sem motivo, paixões que esquecemos. Quando refazemos esses anos nosso esquecimento é sempre mais importante do que a lembrança. Criamos essa importância nos diálogos; passamos mais tempo debatendo o que não é claro do que os acontecimentos indiscutíveis em seu registro oral.
            É mais do que uma tentativa de remontar um passado perdido para nós. É uma forma de mantermos a dúvida em aberto. Recriamos o tempo perdido através de suas lacunas; apesar delas; por causa delas. Tampouco o esquecimento se deve à embriaguez. Nos esquecemos da sobriedade antes de esquecer o porre.
            Ou seja, somos produtos do esquecimento consciente. Disso e do bar. Aquele bar de sempre.

            É quase um ritual de iniciação na vida adulta ser aceito naquele antro mal acomodado de lugares confortavelmente incômodos. O barulho irreconhecível de conversa fútil das mesas ao redor. O torresmo seco do centro da cidade. O sabor amargo da cerveja gelada e o cheiro doce de pinga artesanal. Tudo isso é simbólico para a vida adulta: não cresce aquele que não aprende o prazer de se sentar nas mesas amarelas, de tomar a cerveja barata, a pinga da roça, o torresmo.
            Não cresce porque essas coisas todas reúnem uma miríade de pessoas e idéias, nos faz perder na universalidade do valor humano. Porque, se há um lugar que reúna boa parte das diversas tribos sociais, é esse bar no coração da cidade. Onde você bebe não sob o som de samba e bossa nova, mas do ronco dos motores de ônibus, as sirenes estridentes, o martelar sobre chapas de alumínio, o passo incessante dos pedestres. Isso sim constituí na verdadeira experiência urbana.
           
            Portanto, repito: nossa vida, como parte de um mosaico urbano de idéias, de emoções, contradições e contravenções que começa num bar que não é qualquer bar, mas se repete em todas as cidades e muitas vezes em uma mesma cidade. Esse bar.

            Os primeiros amores doídos, traço daí. Não o amor, mas a dor. A rejeição tardia - mas esperada. A decepção com os outros e consigo mesmo que só pode surgir no ebulir de sentimentos diversos entre pessoas diversas. O caos: pai de todas as inconsistências, todas as diversidades.
            Do caos, dessa quebra de pensamento, vem o crescimento inexorável - e doído - do caráter humano. E é isso o que personifica toda a experiência social que desejamos, de todo esquecer. Não pelo fato esquecido em si, mas pela inconsitência dos fatos, pela contradição de experiências que podemos tirar da mesma: a dúvida sobre a memória inexata deixa em aberto a interpretação e, dessa forma, cada um aprende à sua maneira as lições que precisa.
            Dessa forma eu digo: não se pode confiar em pessoas que não se sentem (em cadeiras, à vontade) nesse bar. Porque nunca foram vítimas de um confronto direto e decisivo de idéias. Direto porque nada atenta mais ao entendimento pessoa sobre a filosofia do que se ver diante de um rosto expressando idéias contrárias. Um rosto, um par de olhos, uma boca. Não um ideal semântico que pode ser defletido com a distância acadêmica. Definitivo porque esse contato direto  com alguém que crê em algo diferente é irreversível. No sentido em que não se mata uma pessoa com a mesma facilidade com que se recusa uma idéia distante, de um autor que nunca encontramos e temos dificuldade em lembrar mesmo o nome.

            Sentar no bar (esse bar mesmo) é um ato de se colocar em contato com algo maior que a experiência pessoal: é a máxima do viver em sociedade, tolerar e aprender com as pessoas diferentes que se encontra por ali. Não é qualquer bar. É o bar do centro, que atraí gente de todo tipo. Esse é o que vale a pena.

Um comentário:

  1. Bacana demais seu texto Hugo. De início me veio à memória "O encontro marcador", de Fernando Sabino e o modo como as pessoas significam as "coisas" nas experiências ao longo da vida. Não é só um bar, lugar físico, não é mesmo? Até porque "não se pode confiar em pessoas que não se sentem (em cadeiras, à vontade) nesse bar". Gostei muito e fiquei pensando se em minha vida (ou no modo como me relaciono com a cidade) haveria esse bar.

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