Tudo começa num bar. O mesmo bar de
sempre. Aquele que ainda usa toalhas de plástico sobre as mesas quadradas e
amarelas, cujas cadeiras são postas sobre outras, quebradas, cujo dono conhece
todos os clientes e esconde, por trás dos bigodes de morsa, a frustração de
amores não vividos. Tudo começa nesse bar.
A
memória de uma juventude desperdiçada, as escolhas mal feitas, os risos sem
motivo, paixões que esquecemos. Quando refazemos esses anos nosso esquecimento
é sempre mais importante do que a lembrança. Criamos essa importância nos
diálogos; passamos mais tempo debatendo o que não é claro do que os
acontecimentos indiscutíveis em seu registro oral.
É
mais do que uma tentativa de remontar um passado perdido para nós. É uma forma
de mantermos a dúvida em aberto. Recriamos o tempo perdido através de suas
lacunas; apesar delas; por causa delas. Tampouco o esquecimento se deve à
embriaguez. Nos esquecemos da sobriedade antes de esquecer o porre.
Ou
seja, somos produtos do esquecimento consciente. Disso e do bar. Aquele bar de
sempre.
É
quase um ritual de iniciação na vida adulta ser aceito naquele antro mal
acomodado de lugares confortavelmente incômodos. O barulho irreconhecível de
conversa fútil das mesas ao redor. O torresmo seco do centro da cidade. O sabor
amargo da cerveja gelada e o cheiro doce de pinga artesanal. Tudo isso é
simbólico para a vida adulta: não cresce aquele que não aprende o prazer de se
sentar nas mesas amarelas, de tomar a cerveja barata, a pinga da roça, o
torresmo.
Não
cresce porque essas coisas todas reúnem uma miríade de pessoas e idéias, nos
faz perder na universalidade do valor humano. Porque, se há um lugar que reúna
boa parte das diversas tribos sociais, é esse bar no coração da cidade. Onde
você bebe não sob o som de samba e bossa nova, mas do ronco dos motores de
ônibus, as sirenes estridentes, o martelar sobre chapas de alumínio, o passo
incessante dos pedestres. Isso sim constituí na verdadeira experiência urbana.
Portanto,
repito: nossa vida, como parte de um mosaico urbano de idéias, de emoções,
contradições e contravenções que começa num bar que não é qualquer bar, mas se
repete em todas as cidades e muitas vezes em uma mesma cidade. Esse bar.
Os
primeiros amores doídos, traço daí. Não o amor, mas a dor. A rejeição tardia -
mas esperada. A decepção com os outros e consigo mesmo que só pode surgir no
ebulir de sentimentos diversos entre pessoas diversas. O caos: pai de todas as
inconsistências, todas as diversidades.
Do
caos, dessa quebra de pensamento, vem o crescimento inexorável - e doído - do
caráter humano. E é isso o que personifica toda a experiência social que
desejamos, de todo esquecer. Não pelo fato esquecido em si, mas pela
inconsitência dos fatos, pela contradição de experiências que podemos tirar da
mesma: a dúvida sobre a memória inexata deixa em aberto a interpretação e,
dessa forma, cada um aprende à sua maneira as lições que precisa.
Dessa
forma eu digo: não se pode confiar em pessoas que não se sentem (em cadeiras, à
vontade) nesse bar. Porque nunca foram vítimas de um confronto direto e
decisivo de idéias. Direto porque nada atenta mais ao entendimento pessoa sobre
a filosofia do que se ver diante de um rosto expressando idéias contrárias. Um
rosto, um par de olhos, uma boca. Não um ideal semântico que pode ser defletido
com a distância acadêmica. Definitivo porque esse contato direto com alguém que crê em algo diferente é
irreversível. No sentido em que não se mata uma pessoa com a mesma facilidade
com que se recusa uma idéia distante, de um autor que nunca encontramos e temos
dificuldade em lembrar mesmo o nome.
Sentar
no bar (esse bar mesmo) é um ato de se colocar em contato com algo maior que a
experiência pessoal: é a máxima do viver em sociedade, tolerar e aprender com
as pessoas diferentes que se encontra por ali. Não é qualquer bar. É o bar do
centro, que atraí gente de todo tipo. Esse é o que vale a pena.
Bacana demais seu texto Hugo. De início me veio à memória "O encontro marcador", de Fernando Sabino e o modo como as pessoas significam as "coisas" nas experiências ao longo da vida. Não é só um bar, lugar físico, não é mesmo? Até porque "não se pode confiar em pessoas que não se sentem (em cadeiras, à vontade) nesse bar". Gostei muito e fiquei pensando se em minha vida (ou no modo como me relaciono com a cidade) haveria esse bar.
ResponderExcluir