- Êpa, essa viagem foi muito rápida! - Tô com muito calor! Essa roupa laranja é um inferno. - C viu? Quase morreu. Foi um grande estouro. - Os portões da escolha foi aberto. Saiu um monte de gente de uma vez. Encavalou. - Frita pastel e coxinha Rute. - Vô leva esse pilantra no pau! Zé subiu no andaime. Maria chegou na casa de Andreia para cuidar do Pedrinho. Raimundo acabou desistindo de faltar ao trabalho. Laura faltou e comprou um atestado na praça 7. Ninguém aqui é vítima. Ninguém aqui sou eu.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

E assim a gente segue dignamente

Maria Augusta Oliveira

        
        Começo com aquela velha história que se repete todos os dias e com um João, como também poderia ser uma Maria, que se refletem em muitos rostos, gostos, medos, anseios, amores e desamores por aí. E tudo começa às 5 da matina, ou até bem mais cedo em alguns casos, quando o nosso João, ou a Maria, acordam, tomam seu café com pão, às vezes seco e sem a manteiga que está em falta, já pensando no tempo que vão perder com a condução até o trabalho. Essa história não é sobre a falta da manteiga, do bife, da cervejinha no fim de semana, nem da prestação atrasada do aluguel ou da geladeira nova, nem do trabalho em si, mas da construção do que a gente chama de dignidade própria, sua, minha, do João e da Maria no meio desse rolo todo.

Somos colocados nesse padrão de vida, nessa noção do progresso e desenvolvimento pessoal, na grande maioria das vezes por falta de oportunidade, que segue a mesma lógica da evolução biológica que vemos nas aulas de biologia desde crianças, ou seja, a ideia de que o ser humano nasce, cresce, reproduz, envelhece e depois morre. E o que acontece nessa selva desordenada em que vivemos, numa tentativa de ordem, é mais ou menos isso, nascemos, somos sustentados pelos pais, depois vem o direito à educação, princípio básico para se atingir a etapa mais “importante”, que é um trabalho no futuro, para sustentar a si próprio, seus vícios, e a família a se constituir, repetindo tudo de novo.

Mas o ponto é que nem sempre temos essa tal de oportunidade que vai nos levar a fazer um curso universitário, ou mesmo terminar o ensino básico, porque a etapa do trabalho parece mais urgente. Não pra se sustentar após uma emancipação, mas pra ajudar na casa dos pais ou pra criar o filho que acabou vindo antes de terminar os estudos, o que seria a etapa precedente nessa escala imaginária. Mas como bem sabemos, na prática, na vida real, cheia de suor, gosto amargo de fome na boca, desgostos e desavenças, não é bem assim que funciona.

No fim, o João e a Maria acabaram em um emprego que por um lado é visto pelo “outro” como uma forma fácil de manter onde sempre esteve, ou de decair. Como é a realidade do que pode ser chamado de subemprego, por exemplo, o cara que limpa para-brisa ou vende bala no sinal, ou também o caso da emprega doméstica, do pedreiro, do operário. O que fica no imaginário desse “outro” que está de fora, que sempre teve mais oportunidades, é que toda condição vista como abaixo da sua seria consequência da falta de esforço, da falta de mérito, associando o que se faz da vida, o trabalho, ao status da pessoa. Nesse sentido, quanto mais intelectual, quanto menos físico, mais valorizado o trabalho é considerado. Mas o que fica de fora dessa reflexão é a importância fundamental que todos esses trabalhos ditos mais físicos têm pra manutenção dessa ordem que o fulano cheio de oportunidades preza, pois está bem colocado e não quer perder seu lugar. 

Por outro lado, temos o olhar de quem está de dentro da coisa toda, que, aliás, começa bem cedo, na escola. O próprio sistema educacional é estruturado pra excluir ao querer decidir qual é o conhecimento válido a ser passado, e principalmente quando avalia a todos, pessoas formadas por um complexo imenso de diversidades, da mesma maneira. Aquele que não se sai bem está fora, e aprende a se ver como aquele que não merece estar incluído por falta de mérito. Sair do padrão é não ser considerado pela diferença, é não ser considerado por algo que tem de melhor em outros termos, é estar fora, fora do mundo das oportunidades. 

       Então, abre-se espaço para o discurso da dignidade, “tá ruim, mas pelo menos não tô matando, nem roubando.” O lugar ocupado pelo João e pela Maria, o estar preso no cada vez mais cotidiano, na realidade que se repete, em prol da busca pelo sustento de todo dia e do sonho de sossego num futuro distante é o continuar continuando, o empurrar com a barriga pra poder comer, pagar o aluguel, pagar a prestação da televisão que só dá pra assistir no fim do dia ou no fim de semana.  É o lugar que a falta de oportunidade coloca e não permite saída, mas que é justificado, e até mesmo aceito, pela ideia da vida digna. É o lugar que a dignidade ajuda a não se contestar.

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