Caroline Louise
Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de
início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de
ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li
biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam
inteiramente de vida...”Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo
de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de
que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim
a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do
mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos
por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso
adivinhar. Clarice Lispector - A Descoberta do Mundo
O modo de me relacionar com as
pessoas e comigo mesma sempre esteve de alguma maneira ligado à forma como eu
enxergava e desejava que o meu cabelo fosse. Alisei o cabelo pela primeira vez
aos 7 anos e minha mãe conta que fiquei tão feliz que até disse que aquele era
o dia mais feliz da minha vida, desde então nunca mais parei de alisá-lo e
sempre queria que ficasse o mais liso possível. Curiosamente foi também mais ou
menos nessa época que no jardim de infância disse a uma coleguinha que ela não
poderia brincar comigo porque ela era preta. Lembro exatamente da carinha dela
e das trancinhas que ela usava no cabelo crespo. O ocorrido não foi uma
inocente maldade infantil, eu provavelmente estava reproduzindo algo que havia
vivenciado em outro lugar, e ali na escola talvez tenha me sentido superior a
ela por ser “mais clarinha” e não ter o cabelo tão crespo. E mais do que isso,
não havia identificação, não conseguia ver naquela menina negra do cabelo
crespo alguém igual a mim; eu me via diferente e melhor do que ela.
Passei mais de 20 anos acreditando
que minha vida seria mais fácil se meu cabelo fosse liso, sempre imaginei que a
vida poderia ser diferente por causa disso, eu seria mais feliz, mais amada,
mais desejada, seria bonita, e principalmente, seria livre! A verdade é que
nunca me enxerguei como negra, não era uma negação consciente e explícita, era
muito mais perverso do que isso, porque eu não fazia parte do “padrão”
hegemônico e também não aceitava minha verdadeira condição, e vivia nessa
fronteira, nesse lugar nenhum que só me trouxe esvaziamento e angústia.
Desde 2012 que venho desejando
diminuir o uso da química, mas não levava a idéia a diante e tinha também a minha
formatura no curso de Direito, e, claro, meu cabelo deveria estar o mais
comprido e liso possível para a data. Me formei, e no stress de recém-formada
tinha receio de que o cabelo natural pudesse ser uma dificuldade a mais no
exercício da profissão, e com isso ia construído vários argumentos que me
impediam de iniciar a famosa transição capilar.
Ao completar 26 anos iniciei um
processo de (des)construção, me vi quase que obrigada a condição de encarar a
mim mesma e minha identidade seja ela qual fosse. Muito se fala da crise dos 30
anos, mas a minha começou mesmo foi aos 26. E como qualquer crise, essa não se
deu da noite pro dia, foi construída e recalcada durante longos anos nos quais
por falta de coragem, eu nunca ousei encarar e assumir as conseqüências do que
eu poderia me tornar ao experimentar ser o que realmente sou. Era chegado o
tempo de travessia, movimento necessário para que não acomodasse à margem de
mim mesma.
Só agora, aos 26 anos, me dei conta
de que sou negra e da responsabilidade política que isso me traz. Cheguei a um
ponto em que a vida havia tomado um rumo que não era meu, nada fazia sentido e não sabia o que fazer. Eu precisava mudar,
e para que isso ocorresse de modo profundo deveria se dar naquilo que me era
mais caro e que mais me incomodava: meu cabelo.
Não cortei o cabelo inicialmente,
mas passei a usá-lo cacheado, o que era difícil não somente pelo processo mas porque
depois de tanta química o cabelo já não sabia a sua constituição natural, e
também porque não estava acostumada a sair de casa daquele jeito. Antes de sair
ficava me olhando no espelho e tentando me convencer de que eu estava bonita. Foram
uns três meses saindo de casa me achando horrorosa, todos os olhares em minha
direção me fazia pensar que eram olhares de reprovação e a minha vontade era
voltar pra casa correndo ou me fazer de invisível ali mesmo no meio da rua. Mas
mesmo com esses sentimentos eu estava disposta a ir até o final na minha
decisão, aquilo era não só necessário na reconstrução da minha identidade e
auto-estima como também uma necessidade política.
No dia em que resolvi cortar de vez
a parte lisa do cabelo e deixá-lo todo natural acho que foi o meu maior ato de
coragem na vida, estava dando adeus ao cabelo alisado e me entregando ao
desconhecido. Um desconhecido que me era assustador, não queria usar o cabelo
black e nunca havia usado o cabelo tão curto, mas era necessário passar por
isso. Nesse dia, cheguei em casa e fiquei
horas me olhando no espelho e tentando entender quem era aquela pessoa ali
refletida. Havia em mim uma sensação nunca antes experimentada, era eu mas não
era eu, era como se pela primeira vez eu me visse verdadeiramente, sem
projeções e sem o desejo de ser diferente, queria apenas ser aquilo que eu era
e me aceitar assim.
Desde então tem sido um esforço
diário de aceitação e de descoberta. Apesar dos elogios, ainda me sinto
insegura em relação à minha imagem, mas não é uma insegurança com desejo de
mudança, é uma insegurança de quem está aprendendo algo novo e precisa de um
tempo para assimilar as coisas. Ainda tenho momentos em que me acho horrorosa,
mas duram cada vez menos, assim como cada dia mais me importo menos com os
olhares na rua. Acho bacana quando meninas me param para perguntar sobre o meu
cabelo e de como fiz a transição, sinto que meu objetivo político está fazendo
efeito.
A vida ainda não tomou o rumo que eu
quero, não me sinto tão dona de mim o quanto gostaria, mas (a vida) ficou mais
leve quando passei a buscar por um “eu” que estava perdido e sufocado pelo medo
e por padrões que nós são impostos socialmente. “O que a vida quer da gente é
coragem”, e isso me soa como um mantra desde que decidi mudar o meu cabelo e a
mim mesma. É um caminho sem volta, não sei se continuarei caminhando por ele,
mas sei que não voltarei a ser o que era antes.
Se o caminho é meu, deixa eu
caminhar, deixa eu
Se o cabelo é meu, deixa eu cachear.
Caroline Louise
e-mail: carolinelouise3@gmail.com
Que espetáculo de texto Carol. Cabelo, subjetivação, política e vida... "(...) depois de tanta química o cabelo já não sabia a sua constituição natural (...)". Quantas "químicas" a vida coloca, quantas "químicas" a sociedade impõem... Mas, ainda bem que o cabelo (ou o sujeito) sempre pode encontrar novas formas de existência. Parabéns pelo excelente texto.
ResponderExcluirTambém o achei foda, João.
ResponderExcluirMuito foda Carol! Me vi aí em alguns momentos! Quando cortei radicalmente meu cabelo, me senti um moleque rs. E senti que teria que enfrentar algumas barreiras: assumir os cachos e ainda o cabelo curto! Mas queria mudar, e ao mesmo tempo que me sentia livre, me sentia a estranha no ninho. Mas estranho mesmo é resistir ao natural, não é? Então é isso aí, se o cabelo é meu, deixa eu cachear!
ResponderExcluirMuito, muito bom Carol... inspirador!!!
ResponderExcluirLindo texto, lindo processo Carol!!! Foda!
ResponderExcluirAchei doido demais…
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