- Êpa, essa viagem foi muito rápida! - Tô com muito calor! Essa roupa laranja é um inferno. - C viu? Quase morreu. Foi um grande estouro. - Os portões da escolha foi aberto. Saiu um monte de gente de uma vez. Encavalou. - Frita pastel e coxinha Rute. - Vô leva esse pilantra no pau! Zé subiu no andaime. Maria chegou na casa de Andreia para cuidar do Pedrinho. Raimundo acabou desistindo de faltar ao trabalho. Laura faltou e comprou um atestado na praça 7. Ninguém aqui é vítima. Ninguém aqui sou eu.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Macumbeiro, eu?

Charles

Uai professor, você também é macumbeiro?

            Fico cada vez mais espantado com as consequências que a falta de conhecimento pode causar. Mas quando se trata de “religiões” afrodescendentes no Brasil, isso toma uma proporção inacreditável. O último evento de intolerância religiosa que tomou grande proporção na mídia nacional aconteceu no dia 16/06/2015, no Rio de Janeiro, contra uma menina de apenas 11 anos, ela foi ferida por uma pedra na cabeça ao deixar um culto de candomblé na Penha, zona norte do Rio de Janeiro. Segundo testemunhas, a menina foi atacada por evangélicos e foi vítima de intolerância religiosa. Com a pedrada, a jovem chegou a desmaiar e perder momentaneamente a memória. Os autores da pedrada, que seriam dois homens, conseguiram fugir. Pouco antes da agressão, eles teriam xingado e provocado os adeptos do Candomblé que estavam com a menina.
            Não quero discutir aqui o preconceito religioso por si só, que apesar de ser estúpido é muito comum em nossa sociedade. Para discutir preconceito religioso no Brasil, e ser justo, penso que eu deveria citar exemplos dos preconceitos que sofrem todos os seguimentos religiosos no Brasil. Não é esse o meu objetivo.
            Quero falar de algo que percebo em minha prática religiosa. Após me tornar adepto do candomblé, percebi que ser candomblecista no Brasil não é tarefa fácil. Não temos a liberdade de falar sobre esse assunto abertamente com todas as pessoas, pois muitos têm receio. Tudo que envolve a religião dos negros tem que ser “disfarçado” ou “escondido” Os trajes necessários, os “colares” de proteção, os cantos/rezas, etc. Percebo que o que faz parte das religiões afrodescendentes é estigmatizado, parece carregar uma mácula, ou que possui ligação com o nefasto.
            A maioria das pessoas possui opinião formada sobre o Candomblé ou a Umbanda, sobre o que ouviram dizer, ou sobre o que leram. A maioria dessas opiniões é negativa, tem associação com alguma coisa ligada ao mal, “coisa” esta que as pessoas também não sabem explicar.
         A conclusão é óbvia, a população brasileira, em sua grande maioria, não conhece o Candomblé, não sabe bem ao certo sobre seus significados, sua origem, como chegou ao Brasil, de onde veio, etc. Muito em parte pela preponderância do cristianismo, base de religiões monoteístas, arraigado em nossa cultura desde a colonização, mas também pela mídia, que não traz esse assunto a tona. A escola também possui um papel fundamental para reforçar esse desconhecimento, uma vez que ignora essa temática, que faz parte da nossa cultura e da formação social desse país. Para tanto, foi necessária a criação de uma lei: a Lei 11.645/08 determina que nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. Esse desconhecimento gera o preconceito, a exclusão e a intolerância.
            Um dos fatos que evidencia a falta de conhecimento sobre as religiões afro em nossa sociedade, e que incomoda seus adeptos, é a forma generalizada de se dirigir aos praticantes destas religiões: Macumbeiros.
            Comumente, a primeira definição de Macumba que se encontra nos dicionários é: antigo instrumento musical de percussão, espécie de reco-reco, de origem africana, e Macumbeiro é o tocador desse instrumento. Popularmente, a palavra macumba é utilizada para designar genericamente os cultos sincréticos afro-brasileiros derivados de práticas religiosas e divindades dos povos africanos trazidos ao Brasil como escravos, os povos bantos e os iorubanos, como o Candomblé e a Umbanda. Entretanto, ainda que macumba seja confundida com o Candomblé e a Umbanda, os praticantes e seguidores dessas religiões recusam o uso da palavra para designá-las.
            A forma como a palavra macumba é utilizada, remete a uma generalização esdrúxula dos cultos afros, o que se concretiza em um verdadeiro absurdo, posto que existem variações diversas entre estes cultos. Para os praticantes desses cultos, isso é um grande desrespeito. Confundir o Candomblé com a Umbanda, por exemplo, é um erro grave devido à origem e as práticas de cada segmento. O próprio Candomblé não é uma religião única, ela possui significativas variações.
            Para que haja uma boa compreensão sobre o Candomblé precisamos nos remeter aos motivos e origens da transição forçada dos negros africanos para a América. A razão da vinda dos negros para o território brasileiro é sabida, mas para se ter uma noção correta do estabelecimento e das características das religiões afro no Brasil é muito importante entender de onde vieram esses negros, pois o continente africano é enorme e diverso e sua cultura varia de região para região.
            O tráfico negreiro provocou um dos maiores deslocamentos populacionais da história da humanidade. Esse deslocamento ficou conhecido como diáspora africana. Uma pesquisa recente coordenada pelo professor David Eltis, da Universidade de Emory, nos Estados Unidos, mostra que, entre os séculos XVI e XIX, mais de 12,5 milhões de africanos foram escravizados e exportados para a América, para a Europa e algumas ilhas do oceano Atlântico. Desses, apenas cerca de 10,7 milhões chegaram vivos ao fim da travessia.
            Tudo começou no século XV, quando os portugueses abriram o caminho para a exploração da costa da África subsaariana, depois de cruzarem o Cabo Bojador, em 1434. Ao longo dos anos seguintes, os navegadores lusitanos avançaram cada vez mais rumo ao sul, até atingirem, na década de 1470, a baía de Biafra, na região dos atuais Nigéria e Camarões. Com o estabelecimento do rendoso tráfico de pessoas escravizadas, o principal polo de exportação de mão-de-obra escrava era a África Ocidental, região que englobava todo o território compreendido entre os atuais Senegal e Camarões. Essa área era responsável por quase 60% das exportações e, nela, a região da Senegâmbia representava a principal fonte de venda de africanos cativos. Ao mesmo tempo, a região congo-angolana despontava como o segundo grande celeiro de escravos no continente. 
            A maior parte dos escravos africanos que desembarcaram no Brasil veio da região ocidental da África. Essa região foi o berço das religiões afrodescendentes que hoje encontramos no Brasil. Devido à diáspora desses povos para várias regiões do continente americano, sua cultura se tornou parte dos países onde foram escravizados, transformando e formando a sociedade de países como o Haiti, Cuba e Brasil.
            Muitos acham que a estrutura do candomblé brasileiro é igual ao que existiu na África. Que os ritos, a forma de organização são exatamente iguais as que os africanos praticavam em seu território de origem. Isso é um grande erro. Obviamente os fundamentos religiosos são preservados, como a língua dos iorubas. Mas muito se adaptou a realidade brasileira. Os africanos que foram trazidos forçadamente para o Brasil, vieram de vários reinos, muitas vezes inimigos entre si. Cada um desses reinos possuíam características religiosas diferentes, posto que, segundo a crença do povo ioruba cada divindade governava um reino. Logo todos os que moravam em determinada comunidade eram vinculados àquela divindade.
            Os deuses dos escravos que vieram para o Brasil são os Orixás. Apenas  alguns deles são cultuados no nosso país: Essú, Ògun, Osossì, Osanyin, Obalúaye, Òsúmàré, Nàná Buruku, Sàngó, Oya, Oba, Ewa, Osun, Yemanjá, Logun Ede, Oságuian e Osàlufan. A palavra Candomblé possui dois significados: Candomblé seria uma modificação fonética de “Candonbé”, um tipo de atabaque usado pelos negros de Angola; ou ainda, viria de “Candonbidé”, que quer dizer “ato de louvar, pedir por alguém ou por alguma coisa”. A palavra Candomblé define, no Brasil, o que chamamos de culto afro-brasileiro, ou seja: “Uma Cultura Africana em Solo Brasileiro”. No Brasil o Candomblé possui significativas diferenças devido à região de origem dos escravos que aqui chegaram. Por esse motivo a palavra Candomblé também é usada para definir o modelo de cada tribo ou região africana, conforme alguns exemplos seguir:


            Os grupos que falavam a língua ioruba - entre eles os de Oyó, Abeokutá, Ijexá, Ebá e Benin - constituíram uma forma de culto denominada de Candomblé da Nação Ketu. Ketu era uma cidade igual as demais, mas no Brasil passou a designar o culto de Candomblé da Nação Ketu ou Alaketu.
            A palavra “Nação” entra aí não para definir uma nação política, pois Nação Jeje não existia em termos políticos. O que é chamado de Nação Jeje é o Candomblé formado pelos povos vindos da região do Dahomé e formado pelos povos Mahin.
            Os Candomblés da Nação Angola e Congo foram desenvolvidos no Brasil com a chegada desses africanos vindos de Angola e Congo.
            O Candomblé na África é predominantemente patriarcal. No Brasil esta religião tornou-se matriarcal, com várias mães de santo na frente do conhecimento. Foi através do pulso forte destas mães que se constituiu o Candomblé brasileiro, preservando tradições africanas. A história mostra que nas primeiras casas de candomblé no Brasil, homens eram proibidos de entrar no xiré (roda de dança para os orixás).
            Ao fundarem as primeiras casas de candomblé na cidade da Bahia, os negros descendentes dos iorubanos, além de cultuarem a sua divindade, acolheram negros de outros reinos, permitindo a esses que cultuassem a sua divindade, ou seja, a divindade do seu reino naquela casa. Uma das grandes riquezas culturais que se configurou no Candomblé brasileiro é exatamente essa “mistura”, onde várias divindades, de diferentes reinos são cultuadas em um mesmo lugar, na mesma casa, formando a família de santo. Uma casa de candomblé é na verdade uma forma de reconstrução da África no Brasil, onde cada reino é cultuado, através de seus deuses. Esse princípio de acolhimento era muito comum entre os negros escravos. Eles sabiam a importância de se ajudarem, unirem-se para remediar a situação penosa da escravidão. A religião se tornou a forma mais forte de manter viva sua cultura, sua visão de mundo, seus cantos, e assim conseguiram amenizar os infortúnios de sua nova condição humana.
            Nesse pequeno recorte já se pode perceber a diversidade do candomblé no Brasil, devido à variedade de negros que aqui chegaram de inúmeras regiões, com costumes diferentes, crenças diversas, etc. Em território brasileiro, estes povos souberam se adaptar sem perder suas características. Mesmo com a imposição do catolicismo. Na época da escravidão no Brasil, os escravos africanos criaram uma maneira criativa e inteligente de enganar os seus senhores. Invocavam os seus deuses africanos sob a forma dos santos católicos: Oxóssi na forma de São Sebastião, Ogum como São Jorge, Oxalá como Jesus Cristo, Ibejis como Cosme e Damião, Iansã como Santa Bárbara, os fios de contas como Nossa Senhora do Rosário, entre outros.
            A grande preciosidade desse encontro de culturas é a permanência das tradições africanas como aqui chegaram. Em uma casa de candomblé os rituais são levados a sério. Candomblé é coisa séria, a tradição deve se mantida com rigorosidade. A língua falada ainda é o Ioruba nas casas de Ketu. Nas casas do candomblé de Angola, existe uma forte tentativa de resgatar a língua dos povos bantos que em parte se perderam. A oralidade é fundamental para se manter e repassar os ritos para as novas gerações. Existem estudiosos de antigos reinos na África que vêm ao Brasil para verificarem como se realizavam determinados rituais e costumes que se perderam na comunidade de origem.
            Devido a essas inúmeras diversificações, torna-se essencial o conhecimento das religiões afrodescendentes para que haja o respeito e a tolerância. Desvincular a imagem do candomblé e da Umbanda de uma perspectiva negativa é fundamental para que floresça o respeito, não só religioso, mas antes de qualquer coisa, cultural. Eu acredito que não haja melhor instituição do que a escola para se estruturar esse conhecimento em nosso meio social. A intolerância religiosa permanece e cresce no nosso país, destaco aqui especialmente o preconceito às religiões de matriz africana. Encontramos em nossos livros didáticos a história da Igreja Católica, a Reforma Protestante, os nefastos tribunais de inquisição, mas quase nada acerca das religiões afrodescendentes. É necessário discutir na escola a deliberada intensão da Igreja Católica de eliminar a crenças dos africanos que foram escravizados no Brasil, e não só destes, mas dos judeus, que foram perseguidos no período colonial em que houve inquisição em nosso país, e ainda o massacre contra os modos de vida dos índios . E aprofundar essa discussão, promovendo um conhecimento verdadeiro e consolidado. As pessoas precisam saber a bela história de criação do mundo contada pelo Candomblé. Necessitam perceber que Lúcifer pertence à crença cristã e que este ser não possui a menor ligação com nossa religião. Que a origem da associação do Orixá Exu com o “diabo” tem origem nos cristãos, que entenderam que a forma de culto dos africanos tem associação com o mal exatamente para desqualificá-la, para violentar seu praticantes. A escola precisa se fazer presente para difundir esse conhecimento, reduzindo o preconceito por meio do acesso aos saberes acerca das religiões afrodescendentes.
               A sociedade brasileira é diversa, miscigenada, e o negro que aqui se estabeleceu contribuiu para a formação social em vários aspectos. Negar isso, ou excluir esse fato é negar a nossa formação original, nos transformando em copiadores/repetidores contumazes de uma cultura imposta pelos colonizadores europeus, negando nossas raízes e nossa identidade.

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