João Paulo
Como bom aprendiz de
antropólogo, devo começar este texto com um alerta: estou em Cabo Verde, na
África, a menos de um mês e tudo que disser deve ser levado ao tribunal das
consciências. Explico o porquê disso: os antropólogos são, geralmente, observadores e a boa Antropologia nos ensina que para observar bem é preciso ter
cautela, para que não sejamos levianos com as pessoas ao ponto de querermos saber
mais sobre elas do que elas próprias. Mais um ponto que interessa: procurarei
simplesmente fazer uma comparação muito grosseira de algumas questões
observadas aqui e que acho que também ocorrem no Brasil.
Como sou brasileiro,
latino-americano, pardo e filho de mãe solteira, e estou em Cabo Verde, isso me
assegura que ao menos estou partindo de algum lugar. Mesmo que fale a partir de
um lugar estreito e muito limitado acho que é preciso tentar ouvir o que as
pessoas têm a dizer, quando falam sobre uma experiência concreta. Elas dizem
algo de mais valor do que as pessoas que falam sobre experiências, lugares e
pessoas com quem nunca tiveram ao menos um mínimo de contato, qualquer que seja
esse. Já cantava Marcos Vale: “Falar do morro morando de frente pro mar, não
vai fazer ninguém melhorar!!
Bem, chega de
explicações!!! Estou a quase trinta dias na cidade de Praia, Ilha de Santigo,
Capital de Cabo Verde, numa moradia estudantil que abriga cerca de 90
estudantes de idades variadas. A moradia fica perto da Assembleia Nacional, das
embaixadas da Rússia, China e próxima da enorme mansão do embaixador
brasileiro. As crianças e adolescentes são originários das 9 ilhas habitadas
que compõem o país, inclusive da ilha do Fogo, que recentemente foi arrasada
pela erupção do Vulcão.
O pessoal daqui adora
brasileiro. Adora mesmo. As refeições são servidas no refeitório da moradia.
Quem prepara a comida de todos são cozinheiras daqui, pessoas que vivem com
bastante dificuldade e que lembram bem os trabalhadores assalariados do Brasil.
São contratados de uma empresa brasileira que administra o restaurante popular
e que há três meses não paga os salários de seus funcionários. Conversei com
algumas dessas pessoas e elas nos contaram que os funcionários que reclamaram
foram todos demitidos.
Como vocês sabem, além
de fazer planos para conquistar o mundo, eu sou funcionário do MTE (Ministério
do Trabalho e Emprego) e vejo todos os dias os trabalhadores da cidade de Belo
Horizonte reclamarem sobre os problemas enfrentados nas relações trabalhistas. Importante
lembrar que este mesmo órgão fiscaliza o trabalho escravo no Brasil. Sinceramente,
chegar aqui e me deparar com um maldito explorador exportando bandidagem não me surpreende. É que
no Brasil, a lei trabalhista está completamente desajustada da realidade. Não
sei se algum dia ela o foi, mas o que vemos na prática é que os trabalhadores
se encontram hoje, completamente sujeitos à rapinagem de capitalistas sedentos.
Duvida? Quer prova empírica, concreta? Fique comigo uma semana no Ministério do
Trabalho e você terá as provas que procura. Além disso, trabalhamos numa
repartição sucateada, sem recursos e atendendo um volume cada vez maior de
descontentes. O descaso com a estrutura do Ministério do Trabalho é o reflexo
do descaso de nossos governantes, petistas diga-se de
passagem, com a agenda dos trabalhadores brasileiros.
O mercado de trabalho
não é o mesmo mercado de quando a CLT foi criada. Os mecanismos de exploração da força de trabalho ficaram mais
eficientes, e a lei continua a mesma que foi criada no governo de Getúlio
Vargas... A atuação do Ministério do Trabalho é limitada pelo seu sucateamento,
e no âmbito da Justiça do Trabalho a situação não é melhor para o trabalhador.
Há um enorme volume de processos, a procura pelo serviço é cada vez maior e a
Justiça está sempre a querer que o empregado faça o famoso Acordo, isto é, a tal da Conciliação com o patrão, e não raro o
empregado sai perdendo nesses acordos. Qualquer um que entenda o mínino de
legislação trabalhista sabe que esses acordos servem somente para desafogar a Justiça
e quem sai perdendo, em dinheiro e dignidade, é o trabalhador. O funcionário começa a não receber, como está
ocorrendo aqui com os cabo-verdianos contratados pela empresa brasileira, e quando
vão recorrer à Justiça para requerer seu direito, geralmente logo na primeira
audiência o patrão, instruído por seu advogado, diz que não tem o dinheiro, que
está quebrado, aí o juiz geralmente propõe um acordo e divide a dívida em
muitas vezes. O funcionário, que já está a mais de três meses sem receber acaba
aceitando, e não raro, acaba ficando sem nada porque é comum que o patrão não
respeite nem mesmo este acordo. Converso com muitos trabalhadores que ficam sem
o salário, sem o FGTS, sem o pagamento do INSS e sem o dinheiro do tal acordo.
Isso é praticamente um processo de acumulação primitiva do capital, e não estou
exagerando pessoal, haja vista a quantidade de trabalho escravo que ainda
existe no Brasil. Me alonguei um pouco porque este cenário e os assaltos
constantes que sofrem a nossa fraca legislação trabalhista, que são alvos
constantes de projetos de lei obscuros que procuram flexibilizar algo já tão
fragilizado formam o terreno ideal para a ploriferação de “verdadeiros vampiros” que vivem de sugar a energia e o trabalho de
pessoas humildes, enquanto mandam seus
filhos para serem educados na Europa.
Lembra até um
personagem machadiano, não acham? Já leram o conto “Teoria do Medalhão”? Em boa
parte de sua obra, Machado de Assis retrata muito bem essa nossa elite parasitária,
que nunca trabalhou e que sempre viveu de rendas. Antes haviam os escravos,
hoje também. Antes eles os acoitavam com chicotes, hoje eles não pagam seus
salários, direito básico e elementar do trabalhador. E é curioso pensar em
Machado, porque será que é só um detalhe ele ter sido mulato, epilético,
auto-didata e pobre e essa mesma elite de hoje estar tão presente em sua obra?
Há os que dizem que Machado não se posicionava politicamente. Esses, ou não o leram,
ou não o entenderam. Se fomos
subalternos, ainda o somos em grande medida. Darcy Ribeiro nos diz que é
preciso inventar o Brasil que nós queremos. Não sei Darcy, se vamos ter força
pra isso. É que nossa Elite é aquela elite tacanha de ontem, que ainda tem
muito poder e que não deixa o barco navegar. Querem manter as coisas como
estão, ou seja, manter as cabeças sob controle, pois dá bastante lucro.
Quando chegamos aqui em
Cabo Verde fomos muito bem recebidos. As pessoas nos reconheceram como
brasileiros e nos miravam com um sorriso muito aberto. A todo momento que se
descobre que sou brasileiro, ganho um sorriso aberto e uma atitude de extrema
benevolência. Roberto Carlos, Calipso, Calcinha Preta, Gabriel Pensador e a
Paula Fernandes (ainda bem que ninguém conhece a Sherazade por aqui) são muito
populares, e o Ronaldinho Gaúcho também é bastante lembrado.
Praia, a capital do
país, ostenta carrões importados que eu nunca tinha visto. São muitos carros
importados. A diferença com o Brasil e o choque que a gente toma aqui é que
quem dirige esses carrões são os negros. À diferença do Brasil, onde temos
raros exemplos de um médico negro, uma professora universitária negra, um
empresário negro, um apresentador de televisão negro, uma juíza negra ou um
promotor negro, aqui todas as pessoas que são visíveis, se é que me entendem,
são negrxs.
Uma coisa curiosa de
Praia é que os serviços públicos são sempre pagos. Esta moradia em que estou é
paga. O liceu é pago, a universidade é paga, o aborto também. Este último, pelo
que ouvi, se tornou legal ainda na década de oitenta como medida de controle de
natalidade, e “pegou”, mas se você quiser abortar pode recorrer ao serviço
somente até o terceiro mês e precisa desembolsar um valor bastante alto.
Pelo que se ouve por
aqui, os filhos dos políticos sempre vão estudar fora do país, e as pessoas
estão sempre a denunciar a índole inescrupulosa de seus governantes, tal qual
fazemos aí. Neste momento estão asfaltando as principais ruas do bairro onde
estou e em muitas destas ruas encontramos o asfalto liso ao lado de vias que
sequer possuem passeios. É a cidade para os carros, como aí, no Brasil.
O país precisa importar
quase tudo que consume e até agora eu vi pouquíssimas pessoas criticando o
consumo. Pelo contrário, muitas pessoas criticam a figura do cabo-verdiano como
um povo que gosta bastante de aparecer. De qualquer forma, isso é uma questão
interna e acho realmente que não devo me meter. Mas que isso parece com o
Brasil, parece.
Ontem ouvi uma história
de um cabo-verdiano. Ele me contava que Cabo Verde foi, no passado, um
entreposto comercial de escravos. Os portugueses os traziam pra cá para “acultura-los”,
palavra dele, antes de vendê-los, no continente americano. Depois que aprendiam
o português e deixavam de ser “selvagens”, palavra também dele, estavam prontos
enquanto mercadoria.
É preciso que todos consigamos
perceber como os mecanismos de exclusão se encontram articulados.. Ainda é
muito comum ouvir as pessoas refletindo sobre desigualdade a partir de chaves
meritocráticas, sem sequer problematizar essa ideia. Em um video publicado
recentemente na internet, sobre uma discussão numa sala de aula na USP, que
virou palco de um debate sobre cotas, podemos ver bem a que tipo de
comportamento e a que tipo de pessoa estou me referindo.
Ainda são muitos os que
argumentam aberta e publicamente que as cotas raciais são um atraso para o
Brasil. Essas pessoas, ou ao menos parte delas (e um exemplo é o cara desse
vídeo que é contra as cotas) costuma contra-argumetar que estas instauram um processo
de racialização da política e provocam uma divisão interna num país em que
todos são iguais. Mas será mesmo que somos todos iguais? Muitos são os que
acreditam e comungam da falácia da meritocracia, sem considerar que as pessoas
estão partindo de lugares distintos. O Brasil está longe de ter reparado sua
dívida histórica com xs negrxs. Nesse vídeo, o cara que se diz contra as cotas
leva o debate exatamente pra esse ponto, afirmando que “a USP é aberta e que é
so estudar que entra”.
Qual é a lógica desse
raciocínio? Exatamente a que reforça o preconceito e naturaliza a exclusão dos
negros que há séculos vem mantendo um apartheid social que elimina milhares de
jovens negros todos os anos no Brasil. Vemos o quão esse raciocício é pequeno e
mesquinho porque ele sustenta a tese de que, por exemplo, o concurso de Juíz é
aberto a todos, e que só não temos juízes negros simplesmente pelo fato de que
a negrada é malandra e não gosta de estudar. - Ah, não tem médico negro? Mas o vestibular é aberto a todos. Então
só não entra quem não quer. Eita branquelada estudiosa essa brasileira viu!!!!
Santa hipocrisia! Nossa elite e nossa classe média são extremamente Hipócritas.
Sim, as estruturas de exclusão
e produção de DEsigualdade se perpetuam e se sofisticam. Se tornam mais
emaranhadas no tecido social e se articulam com discursos nacionalistas,
machistas, racistas e fascistas. Foram apropriadas pelas elites locais na época
dos processos de independência e estão fortes como nunca. Para mim, as diferenças
entre um bandeirante e um ruralista são muito poucas, e dizem mais respeito à
forma do que propriamente ao conteúdo de suas ações. Enquanto o bandeirante penetrou
nas “terras virgens” (e os milhões de indígenas que aqui viviam?), o ruralista
avança sobre a amazônia cometendo práticas tão genocidas quanto os primeiros.
Aqui também, portanto,
a gente vê isso acontecer. A desigualdade social também é gritante e as mazelas
estão muito próximas das nossas. O resultado é bem semelhante. Crime e
insegurança em alta, ricos e pobres separados por muros e vidros blindados,
salários muito baixos para uma grande parte da população e processos de
higienização dos espaços urbanos (exclusão das pessoas consideradas indesejáveis).
A Record é um canal aberto aqui em Cabo Verde e as
novelas brasileiras fazem um grande sucesso. No momento os cabo-verdianos se
deliciam com Amor à Vida, produzida
pelas organizações Globo. Quando vou sair, principalmente à noite, as pessoas
fazem muitos alertas. Dizem sempre pra ir de táxi e falam do perigo das ruas.
A onda de medo, que vai sendo inculcada nas pessoas, vai
gerando bastante lucro, já que sabemos que a segurança é um grande filão de
mercado. Quando se sai na rua, ou mesmo quando discutimos isso com a professora
de Sociologia Urbana que está concluindo doutorado na UERJ exatamente sobre
esse medo, vemos que a coisa não é o que parece. Ela diz que há uma
supervalizaração desse medo e que os números com quais ela está lidando mostram
que a violência não tem realmente aumentado como andam dizendo por aqui.
Os números mostram (e eu que não vou caçar esses números)
que no Brasil as empresas de segurança privada estão milionárias e com os
lucros subindo. Afinal de contas, não dá
pra deixar a família desprotegida não é mesmo? E a defesa do patrimônio? Hoje,
definitivamente, não podemos ficar desprotegidos! Surpreendente o quanto o Brasil
se assemelha nas desgraças com esse país aqui!!!!
Tenho pensado muito no quanto nosso país não olha pra
África. Pensei daqui o quanto desaprendi na escola, por exemplo, muito
mais sobre os fortes do que sobre os fracos. E estes, meus caros, estes
certamente são os mais interessantes. Como sabemos, todo poder vai sempre
encontrar algum tipo de resistência, e a daqui é maravilhosa, como a nossa
também o é, mas de forma diferente, pois sabemos ser diferentes em nossa
beleza.
Excelente texto João. Ao ler seu texto me veio à cabeça o projeto de lei federal 4.330/04, que está em discussão no Congresso Nacional, que tem o objetivo de promover a terceirização trabalhista sem limites, o que destrói o vínculo trabalhista direto, para a formação de um vínculo indireto, beneficiando grandemente os contratadores com o objetivo de aumentar a “eficiência” na produtividade da atividade fim, sem que os contratadores tenham a preocupação direta com o ônus ligado à atividade meio. Projeto esse extremamente prejudicial aos trabalhadores do Brasil, se aprovado constituirá em um retrocesso nas conquistas trabalhistas brasileiras.
ResponderExcluirOh, João.
ResponderExcluirEu tinha feito um comentário aqui, pensei que tinha ido, e só agora que fui reler uns trechos do seu texto que percebi que na verdade não foi.
Muito bom ter notícias suas, saber das suas primeiras percepções e tudo mais... A gente tá te aguardando aqui sabendo que voltará uma pessoa diferente da que deixamos na despedida, mas aposto que essas mudanças vão na direção daquilo que temos construído, inclusive na lógica do terceiro espaço... Somos o não-previsto, sufocados com as mentiras oficiais, mas redescobrindo o quanto é bom respirar fora da hegemonia, fora dessa loucura desenfreada que se tornou o "padrão-cidadão-de-bem"... Estamos num momento muito novo, diferente das épocas passadas, nas quais as pessoas que lemos escreveram. Agora existe a internet, existe a ampliação do trânsito de pessoas do dito "terceiro mundo" entre localidades do próprio sul global... Acho que o que temos descoberto de pouco em pouco é capaz de deslocar muita coisa... E acho muito massa estarmos juntos... Dialogando mais, aprendendo com as semelhanças e diferenças a pensar desde outras globalizações, novos futuros!