- Êpa, essa viagem foi muito rápida! - Tô com muito calor! Essa roupa laranja é um inferno. - C viu? Quase morreu. Foi um grande estouro. - Os portões da escolha foi aberto. Saiu um monte de gente de uma vez. Encavalou. - Frita pastel e coxinha Rute. - Vô leva esse pilantra no pau! Zé subiu no andaime. Maria chegou na casa de Andreia para cuidar do Pedrinho. Raimundo acabou desistindo de faltar ao trabalho. Laura faltou e comprou um atestado na praça 7. Ninguém aqui é vítima. Ninguém aqui sou eu.

terça-feira, 31 de março de 2015

Se somos diferentes em nossas belezas, somos semelhantes em nossas desgraças.

João Paulo

Como bom aprendiz de antropólogo, devo começar este texto com um alerta: estou em Cabo Verde, na África, a menos de um mês e tudo que disser deve ser levado ao tribunal das consciências. Explico o porquê disso: os antropólogos são, geralmente, observadores e a boa Antropologia nos ensina que para observar bem é preciso ter cautela, para que não sejamos levianos com as pessoas ao ponto de querermos saber mais sobre elas do que elas próprias. Mais um ponto que interessa: procurarei simplesmente fazer uma comparação muito grosseira de algumas questões observadas aqui e que acho que também ocorrem no Brasil.

Como sou brasileiro, latino-americano, pardo e filho de mãe solteira, e estou em Cabo Verde, isso me assegura que ao menos estou partindo de algum lugar. Mesmo que fale a partir de um lugar estreito e muito limitado acho que é preciso tentar ouvir o que as pessoas têm a dizer, quando falam sobre uma experiência concreta. Elas dizem algo de mais valor do que as pessoas que falam sobre experiências, lugares e pessoas com quem nunca tiveram ao menos um mínimo de contato, qualquer que seja esse. Já cantava Marcos Vale: “Falar do morro morando de frente pro mar, não vai fazer ninguém melhorar!!

Bem, chega de explicações!!! Estou a quase trinta dias na cidade de Praia, Ilha de Santigo, Capital de Cabo Verde, numa moradia estudantil que abriga cerca de 90 estudantes de idades variadas. A moradia fica perto da Assembleia Nacional, das embaixadas da Rússia, China e próxima da enorme mansão do embaixador brasileiro. As crianças e adolescentes são originários das 9 ilhas habitadas que compõem o país, inclusive da ilha do Fogo, que recentemente foi arrasada pela erupção do Vulcão.

O pessoal daqui adora brasileiro. Adora mesmo. As refeições são servidas no refeitório da moradia. Quem prepara a comida de todos são cozinheiras daqui, pessoas que vivem com bastante dificuldade e que lembram bem os trabalhadores assalariados do Brasil. São contratados de uma empresa brasileira que administra o restaurante popular e que há três meses não paga os salários de seus funcionários. Conversei com algumas dessas pessoas e elas nos contaram que os funcionários que reclamaram foram todos demitidos.

Como vocês sabem, além de fazer planos para conquistar o mundo, eu sou funcionário do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) e vejo todos os dias os trabalhadores da cidade de Belo Horizonte reclamarem sobre os problemas enfrentados nas relações trabalhistas. Importante lembrar que este mesmo órgão fiscaliza o trabalho escravo no Brasil. Sinceramente, chegar aqui e me deparar com um maldito explorador  exportando bandidagem não me surpreende. É que no Brasil, a lei trabalhista está completamente desajustada da realidade. Não sei se algum dia ela o foi, mas o que vemos na prática é que os trabalhadores se encontram hoje, completamente sujeitos à rapinagem de capitalistas sedentos. Duvida? Quer prova empírica, concreta? Fique comigo uma semana no Ministério do Trabalho e você terá as provas que procura. Além disso, trabalhamos numa repartição sucateada, sem recursos e atendendo um volume cada vez maior de descontentes. O descaso com a estrutura do Ministério do Trabalho é o reflexo do descaso de nossos governantes, petistas diga-se de passagem, com a agenda dos trabalhadores brasileiros.

O mercado de trabalho não é o mesmo mercado de quando a CLT foi criada. Os mecanismos de  exploração da força de trabalho ficaram mais eficientes, e a lei continua a mesma que foi criada no governo de Getúlio Vargas... A atuação do Ministério do Trabalho é limitada pelo seu sucateamento, e no âmbito da Justiça do Trabalho a situação não é melhor para o trabalhador. Há um enorme volume de processos, a procura pelo serviço é cada vez maior e a Justiça está sempre a querer que o empregado faça o famoso Acordo, isto é, a tal da Conciliação com o patrão, e não raro o empregado sai perdendo nesses acordos. Qualquer um que entenda o mínino de legislação trabalhista sabe que esses acordos servem somente para desafogar a Justiça e quem sai perdendo, em dinheiro e dignidade, é o trabalhador.  O funcionário começa a não receber, como está ocorrendo aqui com os cabo-verdianos contratados pela empresa brasileira, e quando vão recorrer à Justiça para requerer seu direito, geralmente logo na primeira audiência o patrão, instruído por seu advogado, diz que não tem o dinheiro, que está quebrado, aí o juiz geralmente propõe um acordo e divide a dívida em muitas vezes. O funcionário, que já está a mais de três meses sem receber acaba aceitando, e não raro, acaba ficando sem nada porque é comum que o patrão não respeite nem mesmo este acordo. Converso com muitos trabalhadores que ficam sem o salário, sem o FGTS, sem o pagamento do INSS e sem o dinheiro do tal acordo. Isso é praticamente um processo de acumulação primitiva do capital, e não estou exagerando pessoal, haja vista a quantidade de trabalho escravo que ainda existe no Brasil. Me alonguei um pouco porque este cenário e os assaltos constantes que sofrem a nossa fraca legislação trabalhista, que são alvos constantes de projetos de lei obscuros que procuram flexibilizar algo já tão fragilizado formam o terreno ideal para a ploriferação de “verdadeiros vampiros” que vivem de sugar a energia e o trabalho de pessoas humildes, enquanto mandam seus filhos para serem educados na Europa.

Lembra até um personagem machadiano, não acham? Já leram o conto “Teoria do Medalhão”? Em boa parte de sua obra, Machado de Assis retrata muito bem essa nossa elite parasitária, que nunca trabalhou e que sempre viveu de rendas. Antes haviam os escravos, hoje também. Antes eles os acoitavam com chicotes, hoje eles não pagam seus salários, direito básico e elementar do trabalhador. E é curioso pensar em Machado, porque será que é só um detalhe ele ter sido mulato, epilético, auto-didata e pobre e essa mesma elite de hoje estar tão presente em sua obra? Há os que dizem que Machado não se posicionava politicamente. Esses, ou não o leram, ou não o entenderam.  Se fomos subalternos, ainda o somos em grande medida. Darcy Ribeiro nos diz que é preciso inventar o Brasil que nós queremos. Não sei Darcy, se vamos ter força pra isso. É que nossa Elite é aquela elite tacanha de ontem, que ainda tem muito poder e que não deixa o barco navegar. Querem manter as coisas como estão, ou seja, manter as cabeças sob controle, pois dá bastante lucro.

Quando chegamos aqui em Cabo Verde fomos muito bem recebidos. As pessoas nos reconheceram como brasileiros e nos miravam com um sorriso muito aberto. A todo momento que se descobre que sou brasileiro, ganho um sorriso aberto e uma atitude de extrema benevolência. Roberto Carlos, Calipso, Calcinha Preta, Gabriel Pensador e a Paula Fernandes (ainda bem que ninguém conhece a Sherazade por aqui) são muito populares, e o Ronaldinho Gaúcho também é bastante lembrado.

Praia, a capital do país, ostenta carrões importados que eu nunca tinha visto. São muitos carros importados. A diferença com o Brasil e o choque que a gente toma aqui é que quem dirige esses carrões são os negros. À diferença do Brasil, onde temos raros exemplos de um médico negro, uma professora universitária negra, um empresário negro, um apresentador de televisão negro, uma juíza negra ou um promotor negro, aqui todas as pessoas que são visíveis, se é que me entendem, são negrxs.

Uma coisa curiosa de Praia é que os serviços públicos são sempre pagos. Esta moradia em que estou é paga. O liceu é pago, a universidade é paga, o aborto também. Este último, pelo que ouvi, se tornou legal ainda na década de oitenta como medida de controle de natalidade, e “pegou”, mas se você quiser abortar pode recorrer ao serviço somente até o terceiro mês e precisa desembolsar um valor bastante alto.

Pelo que se ouve por aqui, os filhos dos políticos sempre vão estudar fora do país, e as pessoas estão sempre a denunciar a índole inescrupulosa de seus governantes, tal qual fazemos aí. Neste momento estão asfaltando as principais ruas do bairro onde estou e em muitas destas ruas encontramos o asfalto liso ao lado de vias que sequer possuem passeios. É a cidade para os carros, como aí, no Brasil.

O país precisa importar quase tudo que consume e até agora eu vi pouquíssimas pessoas criticando o consumo. Pelo contrário, muitas pessoas criticam a figura do cabo-verdiano como um povo que gosta bastante de aparecer. De qualquer forma, isso é uma questão interna e acho realmente que não devo me meter. Mas que isso parece com o Brasil, parece.

Ontem ouvi uma história de um cabo-verdiano. Ele me contava que Cabo Verde foi, no passado, um entreposto comercial de escravos. Os portugueses os traziam pra cá para “acultura-los”, palavra dele, antes de vendê-los, no continente americano. Depois que aprendiam o português e deixavam de ser “selvagens”, palavra também dele, estavam prontos enquanto mercadoria.

É preciso que todos consigamos perceber como os mecanismos de exclusão se encontram articulados.. Ainda é muito comum ouvir as pessoas refletindo sobre desigualdade a partir de chaves meritocráticas, sem sequer problematizar essa ideia. Em um video publicado recentemente na internet, sobre uma discussão numa sala de aula na USP, que virou palco de um debate sobre cotas, podemos ver bem a que tipo de comportamento e a que tipo de pessoa estou me referindo.

Ainda são muitos os que argumentam aberta e publicamente que as cotas raciais são um atraso para o Brasil. Essas pessoas, ou ao menos parte delas (e um exemplo é o cara desse vídeo que é contra as cotas) costuma contra-argumetar que estas instauram um processo de racialização da política e provocam uma divisão interna num país em que todos são iguais. Mas será mesmo que somos todos iguais? Muitos são os que acreditam e comungam da falácia da meritocracia, sem considerar que as pessoas estão partindo de lugares distintos. O Brasil está longe de ter reparado sua dívida histórica com xs negrxs. Nesse vídeo, o cara que se diz contra as cotas leva o debate exatamente pra esse ponto, afirmando que “a USP é aberta e que é so estudar que entra”.

Qual é a lógica desse raciocínio? Exatamente a que reforça o preconceito e naturaliza a exclusão dos negros que há séculos vem mantendo um apartheid social que elimina milhares de jovens negros todos os anos no Brasil. Vemos o quão esse raciocício é pequeno e mesquinho porque ele sustenta a tese de que, por exemplo, o concurso de Juíz é aberto a todos, e que só não temos juízes negros simplesmente pelo fato de que a negrada é malandra e não gosta de estudar. - Ah, não tem médico negro? Mas o vestibular é aberto a todos. Então só não entra quem não quer. Eita branquelada estudiosa essa brasileira viu!!!! Santa hipocrisia! Nossa elite e nossa classe média são extremamente Hipócritas.

Sim, as estruturas de exclusão e produção de DEsigualdade se perpetuam e se sofisticam. Se tornam mais emaranhadas no tecido social e se articulam com discursos nacionalistas, machistas, racistas e fascistas. Foram apropriadas pelas elites locais na época dos processos de independência e estão fortes como nunca. Para mim, as diferenças entre um bandeirante e um ruralista são muito poucas, e dizem mais respeito à forma do que propriamente ao conteúdo de suas ações. Enquanto o bandeirante penetrou nas “terras virgens” (e os milhões de indígenas que aqui viviam?), o ruralista avança sobre a amazônia cometendo práticas tão genocidas quanto os primeiros.

Aqui também, portanto, a gente vê isso acontecer. A desigualdade social também é gritante e as mazelas estão muito próximas das nossas. O resultado é bem semelhante. Crime e insegurança em alta, ricos e pobres separados por muros e vidros blindados, salários muito baixos para uma grande parte da população e processos de higienização dos espaços urbanos (exclusão das pessoas consideradas indesejáveis).

A Record é um canal aberto aqui em Cabo Verde e as novelas brasileiras fazem um grande sucesso. No momento os cabo-verdianos se deliciam com Amor à Vida, produzida pelas organizações Globo. Quando vou sair, principalmente à noite, as pessoas fazem muitos alertas. Dizem sempre pra ir de táxi e falam do perigo das ruas.

A onda de medo, que vai sendo inculcada nas pessoas, vai gerando bastante lucro, já que sabemos que a segurança é um grande filão de mercado. Quando se sai na rua, ou mesmo quando discutimos isso com a professora de Sociologia Urbana que está concluindo doutorado na UERJ exatamente sobre esse medo, vemos que a coisa não é o que parece. Ela diz que há uma supervalizaração desse medo e que os números com quais ela está lidando mostram que a violência não tem realmente aumentado como andam dizendo por aqui.

Os números mostram (e eu que não vou caçar esses números) que no Brasil as empresas de segurança privada estão milionárias e com os lucros subindo. Afinal de contas, não dá pra deixar a família desprotegida não é mesmo? E a defesa do patrimônio? Hoje, definitivamente, não podemos ficar desprotegidos! Surpreendente o quanto o Brasil se assemelha nas desgraças com esse país aqui!!!!

Tenho pensado muito no quanto nosso país não olha pra África.  Pensei daqui o quanto desaprendi na escola, por exemplo, muito mais sobre os fortes do que sobre os fracos. E estes, meus caros, estes certamente são os mais interessantes. Como sabemos, todo poder vai sempre encontrar algum tipo de resistência, e a daqui é maravilhosa, como a nossa também o é, mas de forma diferente, pois sabemos ser diferentes em nossa beleza.

2 comentários:

  1. Excelente texto João. Ao ler seu texto me veio à cabeça o projeto de lei federal 4.330/04, que está em discussão no Congresso Nacional, que tem o objetivo de promover a terceirização trabalhista sem limites, o que destrói o vínculo trabalhista direto, para a formação de um vínculo indireto, beneficiando grandemente os contratadores com o objetivo de aumentar a “eficiência” na produtividade da atividade fim, sem que os contratadores tenham a preocupação direta com o ônus ligado à atividade meio. Projeto esse extremamente prejudicial aos trabalhadores do Brasil, se aprovado constituirá em um retrocesso nas conquistas trabalhistas brasileiras.

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  2. Oh, João.

    Eu tinha feito um comentário aqui, pensei que tinha ido, e só agora que fui reler uns trechos do seu texto que percebi que na verdade não foi.

    Muito bom ter notícias suas, saber das suas primeiras percepções e tudo mais... A gente tá te aguardando aqui sabendo que voltará uma pessoa diferente da que deixamos na despedida, mas aposto que essas mudanças vão na direção daquilo que temos construído, inclusive na lógica do terceiro espaço... Somos o não-previsto, sufocados com as mentiras oficiais, mas redescobrindo o quanto é bom respirar fora da hegemonia, fora dessa loucura desenfreada que se tornou o "padrão-cidadão-de-bem"... Estamos num momento muito novo, diferente das épocas passadas, nas quais as pessoas que lemos escreveram. Agora existe a internet, existe a ampliação do trânsito de pessoas do dito "terceiro mundo" entre localidades do próprio sul global... Acho que o que temos descoberto de pouco em pouco é capaz de deslocar muita coisa... E acho muito massa estarmos juntos... Dialogando mais, aprendendo com as semelhanças e diferenças a pensar desde outras globalizações, novos futuros!

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